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Um Maquiavel fora, mas nem tanto, da Filosofia Política

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Na coluna Teatro,
por Rodrigo Morais

“Estou convencido de que é melhor ser impetuoso do que cauteloso, 
porque a sorte é como a mulher; 
e, para dominá-la, é necessário bater nela e contrariá-la.” 
(passagem de O Príncipe)

Maquiavel, pintado por Santi de Tito, no séc. XVI
Maquiavel não foi um homem de sorte. No auge de sua carreira diplomática, quando era o segundo chanceler da República de Florença, foi deposto de seu tão amado cargo devido ao levante que restabeleceu o governo dos Médici, em 1512. Pouco tempo depois, ao ser acusado injustamente de conspiração contra os novos governantes, foi preso e torturado. Mesmo inocentado das acusações que lhe pesavam, acabou banido de sua amada cidade. Confinado em uma casa de campo em San Casciano, seu exílio duraria sete anos e só seria suspenso em 1520, quando Júlio de Médici o contratou como historiador da República. Como eu gosto sempre de dizer, azar dele, sorte nossa, pois foi nesse período de ostracismo que Maquiavel compôs a maior parte de sua monumental obra, dentre elas aquela que pode ser considerada, praticamente sem ressalvas, a melhor comédia italiana do século XVI: A Mandrágora, escrita, por desfastio, em 1518.

Ilustração sobre a planta Mandrágora, no Tacuinum Sanitatis, de 1474
A história da peça, que se passa na Florença de 1504, gira em torno de Calímaco, um estudante que, ao voltar de Paris, apaixona-se perdidamente por Lucrécia, mulher casada com um velho e rico advogado (Messer Nícia). Não bastasse semelhante impedimento, ela seria ainda por cima devota e tida como virtuosa (ou seja, fiel). Para atingir seu objetivo, Calímaco se mostra capaz de mover céus e infernos, arregimentando em prol de sua causa uma gama variada de personagens, que vão desde o amigo Ligúrio até a mãe da pretendida e seu padre confessor. Sabendo que o casal não conseguia ter filhos, e sofria por isso, arma-se o seguinte embuste: Calímaco seria apresentado a Messer Nícia como um grande médico francês, notório devido às descobertas que realizou sobre as virtudes da fertilidade em uma raiz chamada mandrágora, com a qual conseguiu manipular uma poção infalível. Contudo, o falso médico adverte o marido da necessidade de algumas precauções, pois o primeiro homem a ter contato sexual com a mulher que ingeriu a poção absorveria o veneno e morreria em oito dias. Messer Nícia hesita, claro, preocupado com a própria vida, mas a resposta de Calímaco já estava preparada de antemão: na primeira noite o esposo deveria ser substituído por um vagabundo qualquer, a quem ninguém daria pela falta e não seria difícil de conseguir. Adivinhem quem assumiria o papel de vagabundo, novamente disfarçado?

Adaptação d'A Mandrágora para o cinema, por Alberto Lattuada, 1965
Ingênuo e desesperado para ser pai, o marido cai fácil na conversa do enamorado. Mas o verdadeiro problema ainda estava por vir: convencer a recatada esposa. Neste expediente encontra-se toda a graça e toda a perspicácia da crítica de Maquiavel à sociedade de seu tempo, em especial no que concerne aos costumes, isto é, à relação dos homens entre si. Diante das conveniências, sejam elas de esperança pela preservação da linhagem familiar (no caso da mãe de Lucrécia), sejam elas meramente financeiras (no caso do padre confessor), nem os mais convictos postulados morais se sustentam. A prova cabal disso se encontra na última cena da peça, quando Lucrécia, uma vez consumado o ato, reconhece Calímaco no vagabundo disfarçado e lhe diz simplesmente o seguinte: 

“Desde que a tua astúcia, a estultice do meu marido, o simplismo de minha mãe e a malandragem do meu confessor me levaram a fazer o que, por minha vontade, nunca teria feito... Eu te aceito como senhor, dono e guia; tu serás o meu pai, o meu defensor e quero que tu sejas todo o meu bem... E aquele que meu marido quis me tivesse por uma noite, eu desejo tê-lo para sempre... e ele poderá vir e ficar comigo, sem suspeita alguma, quando quiser de agora em diante.”

Rosanna Schiaffino, A Mandragola, 1965
Além da obra em debate, Maquiavel escreveu outras duas comédias nos tempos de exílio (Andria, em 1517, e Clizia, em 1520), todas inspiradas em autores da comédia latina (Plauto e Terêncio), clássicos redescobertos e revalorizados no período renascentista. Peças cômicas como A Mandrágora, juntamente com outras escritas por dramaturgos italianos como Ariosto e Arentino, ajudaram a consolidar o modelo do que se costuma designar de “alta comédia”, configurado mais ou menos em oposição à commedia dell’arte. A primeira se caracterizaria pelo seu cunho eminentemente literário, ao passo que a segunda seria o arquétipo por excelência da comédia visual, popular, considerada, por isso mesmo, “baixa”. Embora Maquiavel tenha emprestado ao teatro uma parte mínima do seu extraordinário talento de pensador político, ressalte-se que A Mandrágora, enquanto obra dramática, vale por si e se explica plenamente nos limites de sua própria linguagem. Todavia, não se pode deixar de notar certos pontos de contato existentes entre ela e o restante da obra de Maquiavel, especialmente com O Príncipe, a mais famosa de todas e escrita poucos anos antes. Até certo ponto, A Mandrágora poderia ser interpretada como uma alegoria a ilustrar ficcionalmente algumas ideias presentes em O Príncipe. A frase utilizada como epígrafe deste texto, embora retirada do último, poderia muito bem ter servido de mote para a composição da primeira. Nesse sentido, ela se distinguiria, entre outras coisas, como uma “peça de tese”, ou seja, uma peça que encerra uma determinada premissa filosófica. Premissa esta, diga-se de passagem, nada edificante.

Para concretizar sua paixão por Lucrécia, não há escrúpulo capaz de fazer com que Calímaco desista do projeto, ainda que, para tanto, fosse necessário humilhar um homem e, possivelmente, desonrar uma mulher. Isso tem nome: amoralismo. O mesmo amoralismo tão presente naquela famosa sentença que, embora Maquiavel jamais a tenha escrito, atravessa sub-repticiamente O Príncipe de cabo a rabo: “Os fins justificam os meios.” Mas nem tudo é tão simples quanto parece. Sendo A Madrágora uma obra-prima, ela comporta diferentes interpretações. Um outro ponto de vista possível para se abordar a peça, que não exclui necessariamente o anterior, nela percebe um caráter deveras moralizante, expresso na oposição estabelecida entre a concupiscência exacerbada de Calímaco e a impotência velada de Messer Nícia. A sucesso absoluto do primeiro em sua empreitada, que só poderia resultar na desgraça do segundo (mesmo que ignorada), seria um sinal da aversão do autor ao decantado homoerotismo da arte florentina, influência, é claro, do paganismo greco-romano, cujo auge teria se dado no governo de Lorenzo de Médici. Certas obras, como o Davi (1444-46) de Donatello, ou o Baco (1497) de Michelangelo, seriam exemplos bastante sintomáticos dessa tendência. Contra ela, Maquiavel teria esboçado a figura de Calímaco, um “herói” que não se acanha frente à possibilidade de impor sua virilidade. Diante de certos hábitos encarados pelo grande pensador como sinais de degenerescência, contrapõe-se em sua peça a afirmação não só da masculinidade como, também, da própria natureza, que deve seguir seu curso inexorável por meio da perpetuação da espécie. Como se pode ver, não foi à toa que Maquiavel ganhou o epíteto de maquiavélico, se é que me entendem.

Por Rodrigo Morais



Uma seleção de frases de Maquiavel em:

Coluna: Teatro



Pílulas de Literatura: Brodsky apud Bauman

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Edward Hopper, Excursion into Philosophy, 1959

"Vocês ficarão entediados com seu trabalho, seus cônjuges, seus amantes, com a vista de sua janela, a mobília ou o papel de parede de seu quarto, seus pensamentos, com vocês mesmos. Por conseguinte, tentarão imaginar maneiras de fugir. Além dos dispositivos de autossatisfação mencionados anteriormente, vocês podem assumir novos empregos, residências, empresas, países, climas, podem assumir a promiscuidade, o álcool, viagens, aulas de culinária, drogas, psicanálise...Na verdade, podem juntar tudo isso, e por algum tempo vai parecer que está funcionando. Até o dia, é claro, em que você acorda em seu quarto em meio a uma nova família e outro papel de parede, num estado e num clima diferentes, com uma pilha de contas do agente de viagens e do psicanalista, mas com o mesmo sentimento de fastio em relação à luz do dia que se infiltra pela janela..."

Joseph Brodsky, On Grief and Reason, 1995.
Apud BAUMAN, Zygmunt. Vida para Consumo. Rio de Janeiro: Zahar, 2008. P. 144. 
Tradução de Carlos Alberto Medeiros.



Cidadão Welles: o imperdoável Orson e a reinvenção do cinema

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por Homero Nunes

O cinema não tem fronteiras nem limites.
É fluxo constante de sonhos.
Orson Welles
*06 de maio de 1915
+10 de outubro de 1985


Hollywood nunca perdoou Orson Welles por ter filmado Cidadão Kane aos 26 anos. Era apenas um garoto que um dia pregou um trote no rádio com “A Guerra dos Mundos”. Quem ele pensava que era para reinventar o cinema apenas com um filme? Já fazia quase meio século desde a primeira exibição da locomotiva dos Lumière em Paris. Da projeção de 1895 àquela de 1941, o cinema ia muito bem, obrigado. Já havia superado os filmes mudos, começava a dar cores às imagens, projetava estrelas nas telas e nos suspiros na plateia. Mas tinha que ser o Orson mesmo! Orson Welles, o jovem que reinventou o cinema aos 26 anos.


Depois de Georges Meliès, Chaplin, Fritz Lang, Eisenstein e o diabo, ninguém achava que o cinema podia ser mais do que já era. Nem precisava! O cinema já era a sétima arte, o auge da técnica, o movimento, “o ópio do povo” (com o perdão de Deus por destroná-lo da sentença de Marx). Foi preciso um destemido rapaz, sem juízo, sem noção do perigo, para realizar o filme listado por 99,99% dos entendidos de cinema e por 101% dos cineastas. Cidadão Kane: roteiro, direção, atuação e ousadia de Orson Welles.

O filme foi inovador desde os primeiros planos, ângulos, enquadramentos e movimentos. Tomadas de baixo para cima, de lado, de cima para baixo – Plongée, para os íntimos. Sucessão de planos e enquadramentos dentro de enquadramentos. Montagem não linear e edição polifônica. Linguagem cinematográfica em tudo que permitia a gramática das câmeras. Cidadão Kane reinventava a própria linguagem do cinema. Além disso, o próprio Orson Welles fazia o papel principal, do jovem ao velho Kane. Fazia tudo. Era demais para a cabeça dos pobres mortais medíocres. A inveja não permitia o perdão, cidadão.

A Marca da Maldade, 1958
De genial também, depois veio A Marca da Maldade, com aquele plano sequência de abertura fazendo escola de novo. Câmera vai, câmera vem, segue a cena, passa em cima do prédio, foca no guarda e por aí vai. Era 1958 e o povo ainda não tinha assimilado o Citizen Kane por completo. Outro grande filme para causar inveja e enquadrar o plano. Entre os dois mais geniais de Welles, uma dúzia mais do bom cinema, sem dó nem perdão.

Antes disso, o menino encapetado, experimentando no teatro, muito jovem se destacou entre ideias e exageros geniais. Produziu peças com atores negros no auge da segregação americana, profanou Shakespeare em atualizações mundanas, rompeu palcos. Quando fez Cidadão Kane levando experimentações do teatro para o cinema, foi considerado o traidor dos puristas. O povo das coxias também não conseguiu perdoá-lo por isso.


Causou mesmo estragos imperdoáveis quando cobriu ao vivo uma invasão alienígena em tom jornalístico no rádio. Pânico geral, engarrafamento nas estradas, congestionamento das linhas telefônicas, saques a supermercados, caos urbano e desespero total. Era uma adaptação do clássico de ficção científica de H.G. Wells, A Guerra dos Mundos. O mesmo que virou filme ruim com o Tom Cruise e a Dakota Fanning em 2005. A adaptação anterior é de 1953, a reportagem de Orson Welles de 1938.


Odiado por décadas, sem o perdão dos que caíram no trote alienígena, ganhou notoriedade pelo feito. Até hoje é estudado como exemplo de teorias da comunicação nas faculdades hipodérmicas e nos modelos de Lasswell. Um caso Roswell de araque. Acabou contratado do estúdio com privilégios de criador sem amarras, carta branca para fazer o filme do Cidadão. Para não perder a rima, perdão: Lasswell, Roswell, Wells e Welles. 


Mas ninguém lhe cultivou tanto ódio, sem sombra de perdão, como William Randolph Hearst, o magnata rancoroso. Inimigo mais poderoso entre os desafetos de Orson Welles, o riquinho rico das comunicações nos States foi a figura que inspirou o cineasta a fazer seu Charles Foster Kane, o tal Cidadão. Welles negou fogo e confirmação quando acusado por Hearst, irritado pela lã felpuda da carapuça que lhe serviu direitinho, no número e cor que lhe cabia. Mas todo mundo sabia de quem se tratava o Rosebud.

Orson Welles e Rita Hayworth, A Dama de Shangai, 1948
Não foi perdoado também porque logo depois de causar no cinema, casou-se com Rita Hayworth, a mais bela flor que Nova York deu à Califórnia. Hollywood deu-a ao mundo. Orson Welles tomou-a para si. Safado! Era ele o cara que a colheu entre espinhosos arbustos de desejos mil. Todos a queriam, ele a teve. Imperdoável. Quando se separou dela alguns anos depois ninguém conseguiu perdoá-lo, de novo, por abrir mão dela. Vai entender.

Orson Welles no carnaval do Rio de Janeiro, 1942
Também o Brasil não o perdoou pelo filme inacabado que deixou pra lá. Veio na leva ideológica da cultura americana nos anos 40. Papagaios e frutas na cabeça eram parte da leva, mas Orson Welles pretendia filmar aqui as jangadas do Nordeste, o carnaval do Rio, bundas e festas, aquele Brazilpueril. E filmou, é verdade, “É Tudo Verdade”, That’s All True. No fim da temporada de meses hospedado no Copacabana Palace, caipirinhas e samba, charutos cubanos, trechos rodados aqui e ali, o projeto naufragou e o sujeito foi embora levando a simpatia do colonizado. Era tudo lorota. O pseudodocumentário sedimentou no fundo da piscina do Copa, junto ao sofá que a lenda jogou pela janela num dia de fúria. Nem o concierge o perdoou.


Enfim, de gênio complicado e inteligente demais para ser normal, Orson Welles passou por períodos de ostracismo e bloqueio criativo, às vezes era empurrado para o limbo devido às brigas e desafetos com a indústria, mas sempre renascia dos acetatos com algum filme nas mangas. Depois de sua morte, em 85 aos 75, várias de suas latas abandonadas foram reeditadas e lançadas. Inclusive o filme brasileiro. Recentemente, na efeméride do centenário, o último filme emergiu do mito para o enquadramento do plano. Mas Orson Welles ainda não foi perdoado por reinventar o cinema e alterar o padrão. Nunca foi fácil ser cineasta depois dele. Imperdoável Orson.



Coluna Cinema


O construtivo jeito brasileiro de organizar a arte

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por Juliano Mignacca

Seria algo anacrônico esboçar reflexões aleatoriamente sobre a arte concreta brasileira. Mas, após visitar duas exposições que acontecem ao mesmo tempo na Estação Pinacoteca, em São Paulo, fui impelido a embarcar nesse período histórico da arte nacional. Essas indagações brotaram quando atravessei a curta distância existente entre as salas que abrigam as exposições A Historia do Modernismo Brasileiro e a Arte Construtiva. A primeira conta com obras do inicio do século 20, uma época em que se aspirava por uma arte nacionalista, que refletisse a nossa identidade. A outra é sobre a abstração geométrica dos anos 50, que surgiu juntamente com o momento de modernização econômica e industrial, resultando no interesse dos artistas na construção de uma nova linguagem, uma nova ordem visual.

Ivan Serpa, Tinta Automotiva sobre Madeira, 1953

Cada uma das mostras apresenta tendências diferentes, mas a gênese estética de ambas é eurocêntrica. Nada de incongruente quando a referência é uma arte que se pretende universal. Até os dias de hoje, a maior parte da produção artística ocidental está atrelada aos cânones estilísticos da Europa. A não ser que estejamos falando de arte popular, primitiva ou Naïf. A arte abstrata geométrica, ou concretismo brasileiro, como é conhecido, foi postulado para se tornar um projeto visual cuja empreitada deixou um legado singular da criatividade artística do país. Numa rápida conversa que tive com o artista plástico Waltercio Caldas, na galeria Raquel Arnaud, ele argumentou algo interessante: “Cada país tem sua maneira de criar harmonia, seu próprio jeito de organizar as coisas”. A escola brasileira adotou conceitos mais radicais do que as tendências abstracionistas do início do século XX. A beleza estética deveria ser exclusivamente das formas geométricas, sem qualquer referência do mundo exterior ou interior do artista. A intenção era alcançar a pureza da arte através da essência concreta: linha, forma, cor e superfície, sem qualquer subjetivismo, isto é, queriam romper com a possibilidade de o expectador construir qualquer interpretação ao contemplar a obra, quer fosse um sentimento lírico, anedótico, emotivo ou metafísico. Com efeito, era necessário abolir a arte figurativa e criar um vocabulário visual objetivo, racionalista, com apoio da matemática. Nos primeiros anos do século 20, a arte havia se libertado da representação real do mundo. O cubismotransformou a forma; o fauvismo, a cor. Desde então os artistas foram imbuídos pelo desejo de pureza na arte, cujo fim, seria somente a beleza intrínseca do objeto. Esse caminho conduziu ao abstracionismo, que desencadeou no suprematismo e no construtivismo russo, no neoplasticismo, na Bauhaus e mais tarde na Escola de Ulm. Essas vanguardas tinham ambições e finalidades diferentes. Algumas mais líricas outras mais racionalistas. Todas, porém, compartilhavam a ideia de que a geometria seria a linguagem que dominaria a realidade universal.

Piet Mondrian, Composição com Vermelho, Amarelo e Azul, 1921
O neoplasticismode Piet Mondrian(1872-1944), que depois fez parte do grupo De Stijl (O Estilo), pintava linhas pretas horizontais e verticais que se cruzavam formando retângulos assimétricos com cores primarias na procura do equilíbrio. Para o concretismo brasileiro, esse abstracionismo era muito lírico, possibilitando a subjetividade diante da obra. Os expoentes da vanguarda russa tinham um proposito mais radical, um conceito de arte não objetiva. Mesmo assim, o grande nome do suprematismo, Kazimir Malevich, queria provocar no espectador reação. Queria que seus quadros não fossem simplesmente peças agradáveis de ver, mas que fossem decifrados. No Brasil, diversos fatores influenciaram o caminho construtivo. O surgimento do estilo internacional da arquitetura moderna no país na década de 30, que idealizava construções racionalistas com princípios de funcionalidade. As exposições de arte na década de 40 com esse mote abstracionista, a inauguração do Masp em 1947, do MAM–RJ e do MAM–SP em 1948 e os cursos e debates dessas instituições focando a nova ordem do dia também. Em 1949, o MAM-SP apresentou a exposição Do figurativismo ao abstracionismo, demonstrando o que viria a se concretizar.  

Kazimir Malevich, Suprematismo, 1916
Mas, certamente, uma das maiores influências para a arte concreta brasileira veio do suíço Max Bill (1908-1994), o maior expoente da arte construtiva na metade do século passado. Ele havia aderido ao termo arte concreta em 1936 – proposto pelo artista Theo Van Doesburg seis anos antes. Porém, a ideia de Max Bill não residia no conceito puramente abstrato como foi sugerido por Doesburg, mas, sim, no sentido mais racionalista, formalista e matemático da construção da obra. Max Bill foi fundador e professor da Escola de Ulm (Escola Superior da Forma) onde trabalhava técnicas plásticas e design. Sua passagem na primeira Bienal de São Paulo em 1951 lhe garantiu o “Prêmio Aquisição” pela obra Unidade Tripartida.

Max Bill, Unidade Tripartida, 1949
A partir dessas influências nasceu, no ano seguinte, em São Paulo, o Grupo Ruptura, liderado por Waldemar Cordeiro. No mesmo ano, foi montada uma exposição no MAM-SP acompanhada de um manifesto. Entre os participantes, Geraldo de Barros, Luiz Sacilloto, o polonês naturalizado brasileiro Anatol Wladyslaw e outros. A 429 km do epicentro do concretismo paulista, o Grupo Frente, do Rio de Janeiro, apresentou uma exposição em 1954, liderado por Ivan Serpa, que também já havia recebido o prêmio “Jovem Pintor” na Bienal de 1951 pela obra construtiva Formas. Desse núcleo, faziam parte Aluísio Carvão,Abrarham Palatnik, Franz Weissmann, Helio Oiticica, Lígia Clark e Lígia Pape.

Ivan Serpa, Formas, 1951
Naturalmente que muitos artistas que não estavam engajados em nenhum movimento desenvolviam mais ou menos as mesmas ideias. Ambos os grupos tinham em sua essência a abstração geométrica, a racionalidade. Não aprovavam que a distinção de uma obra de arte para outra seria consequência do toque pessoal do artista. A arte deveria ter uma linguagem universal. Tinham como base os conceitos da Gestalt, teoria da psicologia da forma na qual, grosso modo, as normas estéticas são conferidas à obra de arte, e não formuladas pelo espectador, opondo-se, assim, ao filósofo alemão Immanuel Kant (1724-1804), cuja teoria afirma que a fruição da arte depende do espectador devido sua bagagem cultural e histórica. As similaridades dos dois grupos não se estenderam muito, além disso. Os paulistas eram mais teóricos e menos flexíveis em suas convicções. Waldemar Cordeiro preconizava o rigor racionalista e matemático do concretismo suíço. Era contra a intuição na confecção da obra. Talvez resida aí um aspecto crítico em relação a eles: conceber a priorialgo antes de executar.

Waldemar Cordeiro, Contradição Espacial, 1958
O grupo carioca era mais imperativo e empírico. O critico Mário Pedrosa, um dos apoiadores do Grupo Frente, diz: “Em face deles (paulistas), os pintores do Rio são quase românticos’’. Tinham mais liberdade para criar, sobretudo porque Serpa, professor de vários desses artistas, adotava o “método Bauhaus”, no qual teoria e liberdade criadora deveriam se convergir. A cor era outro aspecto de discórdia. O Grupo Ruptura criticava o uso de cores porque acreditava que isso poderia desviar a mensagem pura, e consequentemente incitar a subjetividade do espectador. Com tudo isso e por isso, essas escolas se distanciaram e surgiu uma nova ruptura: o neoconcreto,que deu mais autonomia à arte, abolindo o racionalismo.

Hélio Oiticica, Relevo Espacial V1, 1960
Mas no terreno concretista, é curioso reparar como algumas pessoas reagem diante desses quadros em museus, galerias e feiras de arte. Geralmente dão uma olhadela despretensiosa, sem interesse, e seguem a procura de algo que estimule os sentidos e a subjetividade, exatamente o que a arte concreta tentou eliminar. Na maioria das vezes, cabe ressaltar, não é mesmo fácil a fruição dessas obras. A contemplação depende muito mais do intelecto e do entendimento histórico do que simplesmente do olhar. Talvez isso esclareça em parte o interesse do individuo por obras abstratas que sugerem interpretações ou criem sensações, sobretudo pelo impacto cromático, ao invés da composição racionalista da cor, forma e linha.

Willys de Castro, Objeto Ativo, 1962
De qualquer maneira, a arte concreta brasileira teve grande alcance. Esta na arquitetura, nas diagramações de revistas e jornais, no designer, na comunicação visual, enfim, em todo nosso cotidiano. E como certificou Waltercio Caldas, que cada cultura tem sua maneira de organizar o mundo visual das formas, acredito que essa ordem esteja no inconsciente coletivo.


por Juliano Mignacca

Coluna Arte


Alphaville 50: o aniversário de uma obra-prima da ficção científica

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por Rodrigo Morais

“Todos os meus filmes têm começo, meio e fim, 
mas não necessariamente nessa ordem.”
Jean-Luc Godard


Há 50 anos, Jean-Luc Godard, o maior cineasta do mundo em atividade, lançava uma de suas obras mais conhecidas: Alphaville, inusitada incursão do grande artista francês pelo gênero da ficção científica. Seu título, hoje conspurcado devido aos horrendos condomínios fechados que se estabeleceram por aí com esse nome, símbolos do apartheid social brasileiro, refere-se a uma cidade sombria, hostil e desumanizada, situada em um futuro qualquer, não se sabe onde, não se sabe quando. Produzido em preto e branco e quase todo rodado à noite, Alphaville apresenta da primeira à última cena uma concepção visual ousada, que sugere um universo radicalmente impessoal, com seus corredores e rampas desenhados no mais puro estilo moderno, de linhas retas e formas angulosas. A despeito dessa ausência de subjetividade ser uma das marcas de sua mise-en-scèneAlphaville foi inteiramente filmado em Paris, o que revela o uso no mínimo inusitado que Godard fez da “cidade luz” como cenário para seu nono filme de longa-metragem.


A atmosfera soturna e opressora de Alphaville não é gratuita, naturalmente, na medida em que ela tem papel preponderante na obra, conferindo-lhe, entre outros fatores, um explícito caráter distópico. E o que seria isso? Simples: uma utopia ao contrário, isto é, um não-lugar no qual o desenrolar do tempo, em vez de progresso, trouxe retrocesso moral. Trata-se, sem dúvida, de uma crítica contundente às ditas utopias modernas, em especial às de origem iluminista, prefiguradas a partir da seguinte noção: razão = progresso. Alphaville nos mostra que a razão humana, principalmente por meio de seu principal braço, a ciência, é capaz de transformar a vida do homem em um inferno. Sendo assim, o filme de Godard se insere numa tradição que remonta especialmente à literatura inglesa do século XX, pródiga no tratamento desse tema, como demonstram certos romances tais quais Admirável Mundo Novo (1932), de Aldouxs Huxley; 1984 (1949), de George Orwell; Fahrenheit 451 (1953), de Ray Bradbury; e Laranja Mecânica (1962), de Anthony Burgess. Curiosamente, todos foram adaptados para o cinema, com resultados que vão do medíocre (Admirável Mundo Novo) ao bom (1984 e Fahrenheit 451). Na seara da “sétima arte”, se se pode comparar, somente a adaptação feita por Stanley Kubrick em 1971 para Laranja Mecânica originaria um filme “distópico” à altura de Alphaville


Além dessas referências literárias advindas da prosa, Alphaville também tem suas dívidas para com a poesia, mais especificamente em relação à obra Capital da Dor (1926), do francês Paul Éluard, citada em uma determinada passagem do filme. Isso sem contar outras alusões que extrapolam o universo da chamada “alta cultura”, como a trama de história em quadrinhos e a ambientação estilo film noir. Como, em 1965, Jean-Luc Godard ainda não havia rompido completamente com o cinema narrativo tradicional, Alphaville possui um enredo simples, quiçá banal, com começo, meio e fim (nesta exata ordem, é bom ressalvar). Assim se poderia resumi-lo: o agente secreto Lemmy Caution, vindo dos “países estrangeiros” e se passando por jornalista, tem a missão de adentrar em Alphaville para destruir o supercomputador Alpha 60, o controlador de tudo e de todos na cidade. A maneira como isso se efetiva na obra é simplesmente genial: o agente propõe um enigma à máquina, cuja resposta deveria ser o amor. Em tese, um computador jamais poderia decifrar um enigma relacionado a algo tão abstrato como o sentimento amoroso. Todavia, sua capacidade lógica se demonstra tão apurada que ele consegue. Ao fazê-lo, acaba se autodestruindo, irmanando-se, assim, à subjetividade humana. A mesma subjetividade que seus pressupostos ultrarracionalistas deveriam combater em prol de uma “sociedade técnica” supostamente perfeita.


No papel principal do filme foi escalado Eddie Constantine, ator cujo rosto, segundo a crítica de cinema Pauline Kael, seria “tão cansado e curtido que parece um sapato velho”. A seu lado, fazendo par romântico, está Anna Karina interpretando Natascha, um dos muitos seres autômatos de Alphaville. Deslumbrante de tão bela, Karina compõe com Constantine um dos casais mais discrepantes da história do cinema. Assimetrias à parte, na contramão de um autêntico thrillerAlphaville se dá ao luxo de ter final feliz. Basta dizer que a cena derradeira da obra, filmada dentro de um carro em movimento, no instante em que o herói salva a mocinha das invisíveis garras de Alpha 60, é marcada pela seguinte fala de Natascha, por meio da qual ela se salva em definitivo: Je vous aime (Eu amo você). Melhor que novela das nove. Pode acreditar.


Por Rodrigo Morais

Coluna Cinema


Wild Wilde: os 120 anos da prisão de um gênio

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por Patrícia Matos

"As nossas tragédias são sempre de uma profunda banalidade para os outros"
Oscar Wilde 


Oscar Wilde, o mais irônico e petulante dândi de sua época, teve sua moral dobrada, massacrada, nos fétidos porões da prisão. Cabelos raspados, despido de suas vestes e consumido por assombrosos trajes. Humilhado e caluniado, foi condenado após enfrentar por três vezes a rigorosa corte britânica, em 28 de maio de 1895, pelo crime de sodomia, originado de uma relação amorosa com o homem que provocou a ruína absoluta de sua arte.


Nos dois anos do flagelado xadrez escreveu a "A Balada do Cárcere de Reading" e "De Profundis", ofertada a Lord Douglas por quem se apaixonou e a quem atribuiu sua derrota. Entregou sua saúde à desgraça e assistiu suas riquezas e gloria deflagrarem. Quando saiu, farrapo, partiu para o exílio, em Paris. Um exílio de luxo, diriam, mas sem luxo algum. Sucumbiu, após um mortal ataque de meningite sifilítica que agravou devido ao demasiado consumo do álcool.


Oscar Wilde, dramaturgo e poeta, nasceu em 16 de outubro de 1854. Irlandês, filho de protestantes, converteu-se ao catolicismo. Foi líder do Movimento Estético, que tinha como conceito a convicção de que o valor da arte era íntimo, pessoal. Suas obras foram consideradas obras primas do sarcasmo e da ironia, reverenciando a crítica e distribuindo cortejos à moralidade através de contos, novelas e peças teatrais. O escritor era reconhecido por sua excentricidade e com composições premiadas conquistou fortuna e fama.


Casou-se com Constance Lloyd em 1884, teve dois filhos. No entanto, a despeito do casamento tradicional, foi confrontado e seduzido por Robert Ross, seu primeiro amante gay, aceitando e assumindo seu flanco homossexual. Ross, seu amigo mais fiel, permaneceu ao seu lado até a sua prematura morte em 1900, três anos após conquistar sua pseudo-liberdade e brindar ao destino com sua derrota. Suas obras foram recolhidas e suas peças não mais coloriam os cartazes dos teatros. A pedido de Robert, foi sepultado em um túmulo esculpido por Sir Jacob Epstein, conhecido pela obscenidade de suas obras, no Cemitério de Père Lachaise, em Paris, onde finalmente descansou, libertando-se do mais tenebroso veneno social, o preconceito.


por Patrícia Matos

Coluna Literatura

Mais Oscar Wilde no Isso Compensa:












As mil e uma excentricidades de um gênio chamado João Gilberto

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por Rodrigo Morais


Escrever sobre João Gilberto não é tarefa das mais fáceis. Quem se dispõe a fazê-lo, de imediato se depara com a seguinte questão: de que João Gilberto tratar? Do cantor e violonista que dividiu a história da Música Popular Brasileira em antes e depois dele, ou da persona pública, tão estigmatizada, entre outros motivos, devido à sua notória misantropia? Embora a “imortalidade” desse baiano singular se deva à sua música, hoje um patrimônio universal, ninguém há de duvidar ser muito mais divertido falar das inúmeras manias, extravagâncias, idiossincrasias e invencionices ligadas à sua vida pessoal. Discorrer sobre a revolucionária batida de violão desenvolvida por ele, ou sobre o canto à Chet Baker que, associado ao instrumento, criou uma coisa única no âmbito da canção popular, seria em tese mais nobre, claro. Todavia, o anedotário joãogilbertiano tornou-se algo tão lendário, tão rico de histórias, no mínimo, sui generis, que, se não sobrepujou a obra musical, igualou-se a ela em grandeza. Se falar do trabalho de João Gilberto é falar de música sofisticada, falar de sua vida privada é fazer fofoca sofisticada. E quando a lenda é maior que o homem, já dizia aquele grande cineasta norte-americano, que se imprima a lenda, certo? Então, vamos a ela.



João Gilberto nasceu em Juazeiro (BA) no ano de 1931. Disso quase todo mundo sabe. O que poucos sabem é que sua formação musical se deu na rua, na frente de um amplificador pendurado em um poste de luz, o amplificador do seu Emicles, que irradiava, em alto e bom som, para que toda a cidade ouvisse, os grandes sucessos da época. Aos catorze anos ganhou o primeiro violão, de um padrinho boêmio. Aprendeu a tocá-lo sozinho, pelo Método Elementar Turuna. Com dezenove, depois de trabalhar esporadicamente com música na terra natal, participando de orquestras locais, chegou ao Rio de Janeiro sonhando engatar uma carreira artística. Fracassou de maneira retumbante. Embora tenha trabalhado algum tempo como crooner de um conjunto vocal chamado Garotos da Lua, suas constantes faltas e atrasos fizeram com que fosse demitido. Em 1951, por intermédio dos integrantes do grupo, conheceu a maconha, tornando-se, desde então, simpatizante da erva. No início, quando ainda tinha algum dinheiro, comprava a droga no bairro da Lapa, dos garotos que vendiam cigarros em tabuleiros. Depois, quando a situação financeira apertou, passou a cultivá-la na casa de um amigo, deixando para a esposa deste a tarefa de regar a plantinha. Em tempo: ela não sabia do que se tratava. De todo modo, desde então João Gilberto tornou-se conhecido entre os músicos pelo carinhoso e discreto apelido de Zé Maconha.

Como, nesse período de inferno astral, a grana andava sempre curta, João Gilberto se virava como podia, morando de favor na casa de amigos. E como ele se aproveitou desse estratagema! Não foram poucos os abnegados que, seduzidos pela lábia do baiano, tiveram que experimentar as dores e as delícias de se dividir um apartamento com ele. O roteiro era sempre o mesmo: ele chegava, dizendo que ficaria provisoriamente, ia ficando, ficando, até ser expulso. Pudera: além de não contribuir em nada com as despesas domésticas, João Gilberto também não ajudava na limpeza, não obedecia a nenhuma rotina e, ainda por cima, não se acanhava em levar amigos seus para a residência da ocasião. Ademais, pedia dinheiro emprestado aos seus anfitriões e, suprema ousadia para a época, quando estava “em casa”, entre um e outro acorde, davas suas baforadas – ou, melhor seria dizer, os seus tapinhas. Recusando-se terminantemente a trabalhar em qualquer coisa que não fosse com música, sem dinheiro e sem hospedeiros, em 1955 João Gilberto se viu obrigado a sair do Rio de Janeiro. Iniciava-se um período sabático que duraria dois anos, no qual o músico, depois de percorrer um périplo por cidades como Porto Alegre, Diamantina e a Juazeiro natal, voltaria ao Rio com uma “carta na manga”: uma certa batida de violão destinada a revolucionar a história da música popular do século XX.


Consta que a batida foi criada no banheiro da casa de sua irmã Dadainha, em Diamantina, onde João Gilberto passou uma temporada de oito meses. A acústica, como não poderia deixar de ser, foi o que chamou a atenção do músico para aquele aposento específico. Se ele ainda existir, deveria ser tombado pelo poder público. De volta ao Rio de Janeiro, sempre sem dinheiro e sempre se alojando na casa de amigos, João Gilberto imediatamente procurou divulgar o que criara no exílio, mostrando sua batida e canto modernos a todo mundo que se dispusesse a ouvi-los. Um deles foi Tom Jobim, que, depois de mexer os seus pauzinhos, conseguiu convencer a gravadora Odeon a bancar um álbum solo de João Gilberto. O compacto desse álbum, lançado em 1958, continha Bim-bom de um lado e, do outro, Chega de Saudade. Seu impacto, em especial da última canção, todo mundo mais ou menos bem informado tem conhecimento. O que talvez poucos saibam é que, para gravá-lo, o baianinho de Juazeiro demandou uma semana de trabalho em estúdio, no decorrer da qual ele conseguiu enlouquecer os músicos da orquestra que o acompanhavam, os técnicos de som e, por último, o próprio Tom Jobim, arranjador do disco. Isso para o registro de apenas duas músicas! Surgia, pela primeira vez, o tão discutido perfeccionismo joãogilbertiano, que o levou, desta feita, a chamar o “maestro soberano” primeiro de burro e depois de preguiçoso. Era o mesmo perfeccionismo que, no futuro, o levaria a abandonar shows no meio, seja por causa de um ar-condicionado que, segundo ele, estaria desafinando o violão, seja por causa do som que, segundo ele, estaria mal equalizado. Coisas, dizem, de quem tem “ouvido absoluto”, isto é, um ouvido capaz de identificar, sem esforço, qualquer tom e qualquer nota.

João Gilberto e Tom Jobim
O pior é que nem sempre seus famosos chiliques tiveram origem nessa particularidade. Um deles, acontecido no antológico show do Carnigie Hall de 21 de novembro de 1962, o evento que deveria apresentar a Bossa Nova “ao mundo”, teve origem no vinco se sua calça, que, sempre de acordo com ele, não estaria paralelo à costura lateral. Como tocar violão desse jeito? Ou alguém passava a calça de novo, ou João Gilberto não se apresentaria no templo sagrado da música norte-americana. Resultado: enquanto esperava de cuecas dentro do camarim, coube a dona Dora Vasconcelos, então cônsul-geral do Brasil nos EUA, a tarefa de ajustar o vinco e salvar a reputação da música brasileira para todo o sempre. Histórias como essa, exemplos de uma personalidade muito peculiar, pra dizer o mínimo, não poderiam, é claro, se restringir a um espaço exíguo como este aqui do IssoCompensa. Elas mereceriam, possivelmente, uma suíte, isto é, no jargão jornalístico, o desdobramento em pelo menos mais uma postagem. Por ora, seguem os nomes de algumas obras que poderão, quem sabe, matar a curiosidade dos leitores interessados na vida (e também na obra) desse artística a um só tempo genial e genioso, com o perdão do clichê. Do jornalista Ruy Castro, dois livros são fundamentais: Chega de Saudade – A história e as histórias da Bossa Nova (1990), e A Onda que se Ergueu no Mar – Novos mergulhos na Bossa Nova(2001). Voltado somente para a música, recomenda-se o pequeno mas ótimo estudo de Zuza Homem de Mello intitulado simplesmente João Gilberto, da coleção Folha Explica (2001). Os dois primeiros são garantias de boas risadas, embora, é bom lembrar, não se restrinjam à figura em questão. O último é perfeito para quem quer entender por que João Gilberto tornou-se João Gilberto, um dos músicos populares mais respeitados do mundo. Sem nenhum exagero.


por Rodrigo Morais

Coluna Música


Os 200 anos da Batalha de Waterloo

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por Rodrigo Morais

Napoleão em Fontainebleau, Delaroche, 1840
Pouquíssimas batalhas foram tão comentadas e estudadas ao longo da história como Waterloo, o embate que significou a derrota definitiva de Napoleão Bonaparte e que hoje completa 200 anos. Seu desfecho, assim como outras batalhas protagonizadas na antiguidade por Alexandre Magno (Gaugamela) e Júlio César (Fársália), sem dúvida alterou os rumos da humanidade. Modernamente, apenas a batalha de Stalingrado, ocorrida durante a Segunda Guerra Mundial, lhe seria páreo, vamos dizer assim. O mais interessante de tudo o que já foi escrito a respeito desse evento capital é que Bonaparte, mesmo tendo contado com apenas três meses para reestruturar seu exército, após seu retorno da Ilha de Elba, tinha tudo para ganhar. Tudo. E perdeu. Por quê? Por causa de um erro estúpido de um subordinado seu.

Napoleão retornando de Elba, por Charles Auguste Guillaume Steuben, 1818
Após reassumir a chefia da França, naquele período que ficaria conhecido como o “governo dos cem dias”, imediatamente se formou contra Napoleão uma coalização (a sétima e última) composta pela Grã-Bretanha, Países Baixos e a Prússia e liderada pelo duque de Wellington, o homem que entraria para a história como o carrasco do “Pequeno Cabo”. O plano de Napoleão era o seguinte: enquanto ele se encarregaria de lidar pessoalmente com as tropas britânicas, sob o comando direto de Wellington, um de seus generais (Grouchy) teria a missão de retardar ao máximo as tropas prussianas lideradas por Blücher, que se deslocavam para a região de Waterloo, localizada na Bélgica, onde os britânicos guardavam posição. Por causa de um erro banal, relacionado à (má) leitura de um mapa, Grouchy não conseguiu interceptar os prussianos, que, ao se juntarem aos britânicos e aos flamengos, venceram Napoleão em uma batalha que foi uma verdadeira carnificina para os padrões da época: mais ou menos 60 mil homens mortos, sendo 40 mil franceses.

A batalha de Waterloo, 1815, por William Sadler II
Segundo o historiador inglês Paul Johnson, autor de uma ótima biografia do general corso intitulada simplesmente Napoleão(Ed. Objetiva, 210 págs.), não deixa de ser irônico o fato de Bonaparte ter perdido sua última batalha por causa de um subordinado que não sabia ler mapas, logo ele, o “maior cartógrafo militar de todos os tempos”. Após a derrota na Bélgica, Napoleão fugiu e foi preso pela Marinha Britânica ao tentar embarcar no porto de Rochefort para os EUA. Começava, ali, seu derradeiro exílio, cumprido na pequena Ilha de Santa Helena, na costa oeste da África, onde permaneceria até sua morte, ocorrida em 1821. Em um certo sentido, foi a derrota mais vitoriosa de que se tem notícia, na medida em que o mito do liberal derrotado e humilhado em Santa Helena assombraria todo o século XIX e serviria de modelo para a burguesia ascendente. Não à toa, a figura de Napoleão, o homem que se fez sozinho, influenciaria até o romantismo francês, por meio de obras descaradamente bonapartistas como, por exemplo,O Vermelho e o Negro (1830), de Stendhal. Mas isso, com o perdão do clichê, já é outra história...

Napoleão em Santa Helena - por Benjamin Robert Haydon, 1841

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Coluna Bric-aBrac

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Roque Santeiro, aquele que foi sem nunca ter sido

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por Rodrigo Morais


Há trinta anos, no dia 24 de junho de 1985, começava a ser exibida pela TV Globo Roque Santeiro, novela destinada a se tornar a melhor que a televisão brasileira já produziu. Baseada na peça O Berço do Herói (1963), de Dias Gomes, e escrita pelo próprio em parceria com Aguinaldo Silva, Roque Santeiro literalmente parou o país, atingindo picos de audiência que, dizem, chegaram aos cem por cento em alguns momentos. Tive a oportunidade, e o privilégio, de assisti-la três vezes: no ano de estreia e, depois, nas reprises vespertinas do “Vale a Pena Ver de Novo”, em 1991 e 2000. Em todas elas, mesmo em 2000, quando já iam longe meus tempos de criança, eu me diverti à beça, não percebendo qualquer sinal de “ruga” na obra. Em tempo: antes de estrear como novela, em 1985, tanto a estreia da peça, ocorrida em 1965, quanto a estreia de uma outra versão televisiva, de 1975, foram embargadas pelos órgãos censores da ditadura civil-militar brasileira.


Além do enredo, um verdadeiro achado dramatúrgico, baseado na figura de um falso herói cujo mito alimenta a economia de uma cidade inteira, o que mais impressiona em Roque Santeiroé a força de suas personagens. Praticamente todas elas estão plenas de vida, perfazendo ótimas caricaturas de tipos como, por exemplo, o burguês mesquinho (Zé das Medalhas), o senhor de terras truculento (sinhozinho Malta), a perua espalhafatosa (viúva Porcina), o marido moleirão (seu Florindo), a megera (in)domada (dona Pombinha), a falsa recatada (Mocinha) e o líder messiânico (beato Salú). Não seria absurdo afirmar que a personagem menos interessante da novela, embora fundamental para o desenrolar da trama, é a principal, isto é, o próprio Roque, interpretado pelo saudoso José Wilker.


Apesar do sucesso colossal, ou por causa dele, consta que, nos bastidores, a relação entre os autores não era nada boa, com ambos protagonizando brigas homéricas um com o outro do primeiro ao último capítulo. Na redação deste, a tensão chegou ao ápice, visto que cada um queria um final diferente para a história. Na queda de braço estabelecida entre os dois, prevaleceu o final redigido pelo criador do argumento original, Dias Gomes, inspirado no desfecho do filme Casablanca (1942), com a viúva Porcina desistindo de fugir com Roque para ficar com sinhozinho Malta. Final bastante pessimista, diga-se de passagem, lembrando que, ao fugir sem se revelar, Roque deixava a cidade de Asa Branca entregue aos poderosos locais, que continuariam a enriquecer abusando, em seu nome, da fé alheia. Quando eu digo que Roque Santeiro não envelheceu... A opção de Porcina reforçaria o pessimismo da obra, significando a vitória completa do simpático mas terrível sinhozinho Malta, o todo poderoso coronel da região. Felizmente, em 2010, a novela foi lançada em dvd numa edição compactada, o que permite às novas gerações conhecerem-na sem a necessidade de outras reprises, para que ao menos saibam que um dia houve vida inteligente na televisão brasileira. “Tô certo ou tô errado?”


Coluna: Bric-a-brac


Vá para Cuba! Memórias inconsoláveis do cinema de Tomás Gutiérrez Alea

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por Juliano Mignacca


Assim que fechei o pacote para a próxima viagem de férias, programada para Cuba, debrucei-me sobre diversos temas que me interessam em relação ao país, entre eles, o cinema de Tomás Gutiérrez Alea (1928-1996), autor do clássico Memórias do Subdesenvolvimento, de 1968, um dos melhores filmes já realizados na América Latina. A obra é baseada na novela Memórias Inconsoláveis, de Edmundo Desnoes, que também assina o roteiro. Sua personagem principal é Sérgio, vivido pelo ator Sérgio Corrieri, um intelectual burguês que vê a esposa, familiares e amigos partirem para Miami após o triunfo da revolução. Ele permanece no país e observa as mudanças enquanto vagueia pelas ruas de Havana submerso em monólogos interiores (fluxos de consciência) e nas memórias do passado.


Sérgio se mostra crítico em relação ao velho e ao novo regime, embora se mantenha numa posição distanciada, incapaz de agir ou assumir qualquer atitude transformadora. É um personagem deslocado, que não se encaixa na realidade dos que ficaram no país nem tampouco daqueles que se foram. A luneta que ele utiliza na varanda do seu luxuoso apartamento evidencia isso. Ela o mantém a distância, vendo tudo de cima e de longe. Como disse Alea: “a luneta se transformou no símbolo da personagem, como se Havana fosse um objeto de laboratório”. Alea, ou Titón, como também era conhecido, trabalhou em curtas e pequenos projetos cinematográficos nos anos anteriores à revolução, época em que praticamente não se fazia cinema em Cuba.


Após a tomada do poder por Fidel Castro, em 1959, uma das primeiras metas culturais foi a criação do ICAIC (Instituto Cubano de Arte e Indústria Cinematográfica). Alea foi um dos pioneiros do Instituto, o que lhe permitiu realizar seus primeiros documentários e longas-metragens sobre a revolução e os problemas do país. Pela primeira vez nascia uma estrutura para o cinema em Cuba, e Alea finalmente poderia dar prosseguimento à sua vocação. Apesar de o Instituto estar sob tutela do Estado, havia interesse de que o cinema cumprisse sua função de espetáculo, mas sem deixar de lado suas ambições estéticas, propondo e sugerindo reflexões. Não era para ser algo panfletário como foi a maioria das artes do “realismo socialista”, no qual imperou o dogmatismo ideológico. Até mesmo porque, em Memórias do Subdesenvolvimento, a personagem Sérgio é uma espécie de anti-herói, um homem que vai se descontruindo, se esfacelando aos poucos. O filme não é idealista, não sugere uma sociedade ideal ou um comportamento a ser seguido. O que se vê são as implicações que decorrem com a chegada da revolução. Há um olhar crítico e autocrítico de quem está lá dentro e assiste in loco ao desenrolar da história.

Tomás Gutiérrez Alea (1928-1996)
O diretor cubano adota soluções interessantes de estética e narrativa. Várias cenas são intercaladas por “câmera subjetiva”, isto é, não vemos o protagonista, e sim, o que ele está vendo. Em lugares públicos ele usa enquadramentos fechados de pessoas olhando diretamente para a câmera, produzindo uma sensação própria de documentários. Para aumentar ainda mais essa sensação são inseridos no filme recortes de jornais, depoimentos e fotos com narração em off que parecem notícias de rádio ou televisão. Esse artifício específico remete ao filme Bandido da Luz Vermelha, de Rogério Sganzerla, coincidentemente também realizado em 1968. Há uma cena em que Sérgio, se sentindo sozinho e isolado em seu apartamento, escuta a gravação de uma discussão entre ele e a ex-esposa, um belo achado cinematográfico para inserir dois tempos narrativos diferentes.


O roteiro do filme foi se configurando durante as filmagens e a montagem. Com efeito, o resultado final difere do que havia sido originalmente planejado: Sérgio, morto após se suicidar, narrando o filme todo em flashback. Alea preferiu deixar o desfecho aberto a conjecturas. A cena derradeira apresenta um belo plano-sequência filmado da varanda do apartamento, que mostra o exército se posicionando em cima dos edifícios e os tanques de guerra adentrando pelas avenidas de Havana. Sérgio, agoniado em sua poltrona, abre e fecha um isqueiro cujo som se assemelha ao tic-tac de um relógio. Aos poucos entram imagens de tanques e soldados, porém o som do tic-tac do isqueiro permanece e invade a cena como se estivesse anunciando os últimos minutos que antecedem a nova realidade do país ou o iminente suicídio do protagonista. Um epílogo formidável. Um filme autoral.



Alea também fez o magnífico A última Ceia(1976), a bela comédia Morte de um Burocrata (1966) e Morango e Chocolate (1993), talvez sua obra mais conhecida do grande público. Todos eles proporcionam uma verdadeira imersão nos aspectos culturais e políticos daquela ilha que se difere tanto do resto do continente americano. Com os filmes de Alea, sobretudo Memórias do Subdesenvolvimento, foi possível fazer um recorte prévio do país. É como se estivesse escrevendo um diário de viagem antes mesmo de embarcar. As imagens e colagens do filme que retratam aquele momento do passado estão em minha memória aguardando o meu testemunho no futuro.

Morango e Chocolate, 1993

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Coluna: Cinema


Nicolas Chamfort: as máximas de um suicida desastrado nos tempos da Revolução Francesa

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por Rodrigo Morais

Jacques-Louis David, A Morte de Marat, 1793

Vivendo na segunda metade do século XVIII, Sébastien-Roch Nicolas (1740-1794), mais conhecido simplesmente pelo pseudônimo de Chamfort, talvez tenha sido o último descendente dos chamados grandes moralistas franceses, como La Rochefoucauld e La Bruyère. Em que pese ter se dedicado à dramaturgia, se hoje o nome de Chamfort ainda é lembrado e citado isso se deve, com certeza, não às medíocres tragédias neoclássicas que escreveu, mas aos aforismos e epigramas que registrou em pilhas de cartões avulsos nos últimos anos de vida, publicados postumamente, em 1803, com o título Máximas e pensamentos, personagens e casos. Outro fator que contribuiu, e muito, para sua notoriedade, fazendo dele até objeto de estudo para o filósofo alemão Friedrich Nietzsche, foi sua vida deveras atribulada, que culminaria num suicídio pungente e totalmente desastrado. Vale a pena, mesmo que de modo sucinto, narrá-lo aqui. No dia 10 de setembro de 1793, Chamfort trancou-se no quarto onde vivia, em Paris, pegou uma pistola, encostou o cano frio na própria têmpora e disparou. A bala atingiu seu olho direito e destruiu seu nariz, mas não o matou. Surpreendido de ainda estar vivo, o escritor apanhou uma navalha e cortou a garganta. Resistindo novamente, cortou o peito em “X”. Antes de perder os sentidos, ainda teve tempo de cortar outras veias, nos punhos e nas pernas. Mesmo assim, não espirou, pelo menos não imediatamente.

A poça de sangue que se alastrou por debaixo da porta chamou a atenção das pessoas do lado de fora, que vieram em seu socorro. Chamfort só veio a dar o suspiro derradeiro cerca de oito meses mais tarde, num hospital, em decorrência dos ferimentos. Tinha, então, 54 anos. Mas o que, afinal de contas, teria levado um homem tão inteligente e sagaz a atentar contra a própria vida? Entre outros motivos insondáveis, que só se pode especular, a aflição de Chamfort relacionava-se aos rumos que a Revolução Francesa havia tomado, devido à radicalização que se seguiu com a ascensão dos jacobinos ao poder.

De origem modesta, filho natural, como se dizia na época, de um padre, Chamfort conseguiu subir na rígida hierarquia social francesa à custa de muito esforço e talento. Em 1776, após a representação de uma de suas peças, Mustapha et Zéangir, no Palácio de Fontainebleau, teve a sorte de cair nas graças da rainha Maria Antonieta, que o presenteou com uma sinecura e uma vultosa pensão. Era tudo o que um arrivista palaciano como ele podia ambicionar. Contudo, homem de inteligência participativa (ou “anticontemplativa”) que era, não suportava o papel que a injusta sociedade de seu tempo, eminentemente estamental, lhe reservara, de ser uma espécie de bufão dos poderosos.

Com efeito, decorridos alguns anos, o último dos grandes moralistas franceses viria a recusar essas benesses pelas quais tanto lutou, entusiasmado com o advento da Revolução e seus princípios igualitários. Pena que a lua de mel com os eventos subsequentes a 1789 durou pouco: horrorizado com os excessos revolucionários, Chamfort passou a atacar pela imprensa os principais líderes da recém proclamada República da França, como Robespierre. Administrador da Biblioteca Nacional, acabou preso, denunciado por um subordinado que o acusava de ter difamado a memória de Marat, o incendiário jornalista jacobino que, pouco tempo antes, fora assassinado na banheira de casa. Ao sair da prisão, foi colocado sob vigilância, sendo, ainda por cima, obrigado a dar abrigo e alimentação ao guarda responsável. O cerceamento de sua liberdade, aliado à humilhação de se ver vigiado a todo instante, teriam motivado a resolução que tomou em dar cabo da vida. Nove anos depois de sua tragicômica morte, conforme se informou, aqueles cartões soltos, encontrados de modo esparso nas gavetas da casa de Chamfort, vieram a lume, editados em forma de livro, perpetuando seu prestígio, simbólico ou não, de homem livre, cujo espírito superior não se envergava aos donos do poder da ocasião, fossem eles nobres ou burgueses. Somente em 2007 as geniais frases de Chamfort seriam traduzidas e publicadas em português, num volume intitulado Chamfort – Máximas e Pensamentos, lançado pela José Olympio Editora. Seguem abaixo algumas pérolas recolhidas a esmo na mencionada publicação, uma pequena amostra para os leitores do Isso Compensa da inteligência “chamfortiana”.



“A sociedade é composta de duas grandes classes: os que têm mais jantares do que apetite, e aqueles que têm mais apetite do que jantares.”

“A falsa modéstia é a mais decente de todas as mentiras.”

“A grande infelicidade das paixões não reside nos sofrimentos que elas nos causam, mas nos erros, nas baixezas que elas nos fazem cometer e que degradam os homens. Sem esses inconvenientes, elas levariam vantagens demais sobre a fria razão, que não nos torna felizes. As paixões fazem o homem viver, a sabedoria o faz apenas durar.”

“A melhor filosofia, em relação ao mundo, consiste em aliar o sarcasmo da graça à indulgência do desprezo.”

“A mudança das modas é o imposto que a indústria do pobre cobra sobre a vaidade do rico.”

“É por meio do amor-próprio que o amor nos seduz. Como resistir a um sentimento que, aos nossos olhos, embeleza o que nós temos, devolve-nos o que perdemos e nos dá aquilo que não possuímos?”

“Às vezes nos dizem para que aceitemos ir à casa de uma ou outra mulher: Ela é muito amável; mas se eu não quero amá-la! Seria melhor dizer: Ela é muito amante, porque existem mais pessoas que querem ser amadas do que desejam elas mesmas amar.”

“Li em algum lugar que em matéria de política não havia nada mais nefasto para os povos do que os reinados excessivamente longos. Ouço falar que Deus é eterno: não é preciso dizer mais nada.”

“Nas coisas grandes, os homens se mostram da maneira que lhes convêm mostrar-se; nas coisas pequenas, mostram-se como eles são.”

“Viver é uma doença da qual o sono nos alivia de dezesseis em dezesseis horas. É um paliativo. A morte é o remédio.”

“A vida contemplativa é muitas vezes infeliz. É preciso agir mais, pensar menos, e não nos observar enquanto vivemos.”

“Na França, deixam sossegados os que ateiam fogo e perseguem os que soam o alarme.”

“Os pobres são os negros da Europa.”


Compensa:
Chamfort – Máximas e Pensamentos

Aos leitores mórbidos e/ou sádicos, que porventura se interessaram mais especificamente pelo agonizante suicídio de Chamfort do que pelo seu pensamento aforístico, indica-se a leitura do Dicionário de Suicidas Ilustres, escrito por J. Toledo (Ed. Record, 1999), de onde foram retiradas algumas das informações aqui expostas.










Hemingway bebia aqui: uma aventura pelos bares de um escritor cosmopolita

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por Homero Nunes

Ernest Hemingway *21 de julho de 1899 + 02 de julho de 1961
Ernest Hemingway era alcoólatra. Gostava tanto dos bares e dos biri-nights, que os colecionava ao redor do mundo. Escolhia-os a dedo, pelos drinks servidos, pela música tocada e, sobretudo, pelos bêbados que lhe faziam companhia. Conversava muito, precisava da interlocução, ainda que mais falasse e pouco ouvia. Era preciso encontrar o lugar e a corja. Antro com garrafas e homens, aonde se podia ir a qualquer hora, sem escudeiro, sem convite, sem cerimônia. Tragos e rasgos, gente comum. Quando conquistava seu lugar ao balcão, tornava-se fiel frequentador. Não precisava experimentar outros se aquele lhe servia bem. Talvez mais um ou dois, com ambiente e copos a variar. Alguns se tornaram famosos pelo ilustre freguês, ainda hoje anotando pedidos e colhendo gorjetas por causa dele. Também um sem número de lugares que dizem que o Hemingway bebia por lá. Muito possível, pois ele bebia mesmo por toda parte, mas tantos pouco provável. Há inclusive um bar em Madrid, nos arcos da Plaza Maior, que exibe uma estranha placa com os dizeres: “aqui Hemingway nunca bebeu”.


Correspondente de guerra, cobrindo o “Dia D”, entrou em Paris com as tropas aliadas que libertaram a cidade, expulsando os últimos nazistas a pontapés. Reza a lenda que um dia antes, quando os alemães fugiam aos montes. Instalou-se no Ritz com sua tropa e tornou-se praticamente sócio do bar. Hemingway voltava ao hotel duas décadas após ter ocupado Paris com a geração perdida dos escritores americanos nos anos 20, dividindo mesas com F. Scott Fitzgerald, Ezra Pound, Ford Madox Ford e a gang de “fracassados” que reinventaria a literatura no início do século. Na primeira vez, sem dinheiro nem fama, o bar do Ritz era coisa esporádica. Na Segunda Guerra, o ocupou como dono do pedaço. Sempre que voltou, as muitas vezes, sentia-se em casa, habitué. Hoje, o Ritz ostenta o bar com o nome dele, lembrando o ilustre sócio da época da guerra. Os preços equivalem à relação custo-fracasso da geração dos anos 20.


Quando o avião que levava Hemingway e a esposa em um vôo panorâmico no Alto Nilo caiu, podia ter sido o fim, mas ambos sobreviveram para a segunda queda no dia seguinte. Também o avião do resgate, que levaria o casal ao hospital, caiu em meio à savana africana. Cheios de escoriações e fedendo sangue, também poderiam ter virado comida de leões, hienas e outros bichos carniceiros. Dia da caça. Mas o resgate chegou a tempo. A África perdoava Hemingway pelos tiros disparados. E foram muitos, nas várias vezes que caçou e bebeu por lá. Não se sabe ao certo quantas tardes antes Hemingway passara no pequeno bar com vista para o Kilimanjaro – nem ao menos quais dores deram origem à gangrena do personagem d’As Neves do Kilimanjaro, ou se apenas os problemas intestinais que o tiraram de um safari certa vez... mas ainda hoje o bar dos caçadores no Parque do Serengueti exibe fotos, citações e a famosa placa dizendo que ali bebeu o escritor caçador. Como eram poucos os lugares a beber por lá à época, a tal placa tem credibilidade. Mama África.


Roma carrega 20 e tantos séculos de peso e história, mas, sinto muito, Veneza é a cidade mais apaixonante da Itália. Hemingway era apaixonado por Veneza. Hospedava-se no pequeno hotel na saída do Canalasso, pertinho da Piazza de São Marco, sobrado do Harry’s Bar. O lugar se tornou famoso por causa dele e, justamente por isso, é muito bem frequentado até hoje. Orson Welles, Truman Capote e Georges Braque que o digam. Indicação do “Papa” ninguém recusa. A vista de fora é maravilhosa, mas ironicamente, o escritor sentava-se em um canto do salão, entre duas paredes perpendiculares, como se esperando o atirador entrar sacando a arma no saloon. Sua mesa é lembrada nas selfies diante da famigerada plaquinha que indica o frequentador. Se em algum dia, por traição do destino ou espírito indomado, Veneza for romântica demais para você, lembre-se da saída de Hemingway: muito álcool no Harry’s Bar. Arrivederci!


O Nobel deve à Cuba O Velho e o Mar. A ilha de Fidel e do olhar romântico do Che em camisetas vermelhas, fora antes o refúgio de Hemingway. Na verdade, a despeito da famosa foto do escritor com Fidel em La Bodeguita del Medio, a Revolução Cubana significou o fim do paraíso do escritor. Em 1959 os barbudos entraram em Havana, em 1961 Hemingway deu-se um tiro na boca, de “dois canos longos”, puxando o gatilho da espingarda com o dedão do pé. Há quem diga que perder Cuba adiantou seu suicídio. Drama à parte, o fato é que até sair da ilha por causa da reviravolta política, o escritor tinha lá seu lugar preferido: praias maravilhosas, charutos, rum e a pescaria. Pescador de grandes peixes, obcecado pelo Marlim Azul, foi da convivência com os pescadores cubanos que nasceu a história do livro mais famoso e premiado (Nobel!) de Ernest Hemingway: O Velho e o Mar. Ah, mas ele não foi escrito sem muitas biritas nos bares de Havana. Ele guardava quarto no Hotel Ambos Mundos, cujo terraço se abre em mesas sobre Havana Velha. Privilégio ainda se hospedar por lá. Contudo, os bares favoritos eram dois: “El Floridita” e “La Bodeguita del Medio”, ambos em funcionamento, com as devidas homenagens em fotografias na parede. A Floridita ainda abusa da propaganda com a estátua em bronze escorada no balcão. Quem quiser pode tomar seu daiquiri junto à foto obrigatória. Alguns quarteirões dali, quase na antiga catedral da cidade, fica o boteco do meio, La Bodeguita del Medio. O almoço serve o clássico “moros y cristianos” – um “baião de dois” cubano, arroz e feijão preto – mas o que atraia escritor barbudo e continua atraindo todos mais é o melhor Mojitodo mundo (contando paisagem, atmosfera, história e rum cubano, claro). Lá, em destaque está o quadro com a frase autografada: “my mojito in la Bodeguita, my daiquiri in el Floridita”.


Acostumado ao calor selvagem e fugindo do frio civilizador, Hemingway montou residência na Flórida, em Key West. Casa com varanda, frutas no quintal, gatos soltos na área. Vidinha doméstica, mas nem tanto. Lá adotou o bar do Joe, o agora famoso por causa dele Sloppy Joe’s. Bebia tanto por lá que uma vez roubou o mictório dizendo ter direito a ele por tanta urina que fez ali, milhares de dólares gastos em secos Martinis. O urinol virou bebedor de gatos no jardim.  Dizem que era mais fácil achá-lo no Joe’s que em casa. Hoje, o bar engana turistas dizendo que o lugar era frequentado por Hemingway, mas, no entanto, mudou de endereço (mesma rua) no final dos anos 50, quando o escritor nem mais o frequentava. O nome e as bebidas são os mesmos.


Enfim, por todo lado, mundo afora, há quem diga que por ali bebia Hemingway. Em Madrid, a Casa Botín e a Cerveceria Alemana; em Pamplona, o Café Iruña; em Barcelona, o Marsella; em Paris, La Rotonde; em Nova York, o Costellos; na Cochinchina algum outro qualquer. Dos muitos bares, daqueles que se pode comprovar, ainda hoje é possível beber ao bom gosto de Hemingway. O desgraçado sabia escolher muito bem. E escrever como ninguém. Um brinde, alcoólico, à memória e à obra de Ernest Hemingway!



Compensa:


A Boa Vida Segundo Hemingway
Editado por A. E. Hotchner, tradução de Luis Fragoso. São Paulo: Larousse, 2008.





Papa Hemingway: a personal memoir

A. E. Hotchner, 1966.









Dos lugares e das palavras do próprio Hemingway:
Da Paris dos anos 20:
Paris é uma festa, 1964 (póstumo)

Da guerra:
Por Quem os Sinos Dobram, 1940

Da África:
As Neves do Kilimanjaro, 1932

De Veneza:
Na Outra Margem, Entre as Árvores, 1950

De Havana:
O Velho e o Mar, 1952

Da Flórida:
Ilhas na Corrente, 1970 (póstumo)


Um genial burocrata chamado Graciliano Ramos

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por Rodrigo Morais


Poucos hão de duvidar que Graciliano Ramos foi um dos maiores escritores da literatura brasileira. Para muitos, no âmbito do romance, ele seria simplesmente o segundo melhor de nossa história literária, atrás apenas do imbatível Machado de Assis, tido e havido como um dos grandes da literatura universal. Na honradíssima segunda colocação no panteão das letras nacionais, somente Guimarães Rosa poderia lhe fazer frente, ainda que, a rigor, só tenha produzido um romance (Grande Sertão: Veredas, claro). Fora da seara que o consagrou, sabe-se que Graciliano Ramos amargou alguns meses de cadeia por causa de uma insuspeitada atividade política, fato narrado por ele mesmo em um de seus livros mais conhecidos, Memórias do Cárcere (1953), dos melhores em seu gênero específico. Mas isso se sucedeu em 1936, em virtude da paranoia anticomunista que se seguiu à Revolta Vermelha, quando o escritor alagoano já havia adquirido algum reconhecimento graças às suas primeiras obras: Caetés, de 1933, e São Bernardo, de 1934. Uma faceta menos conhecida de sua personalidade, porém não menos fascinante, diz respeito a uma experiência ocorrida nove anos antes de sua prisão, em 1927, época em que se tornou prefeito de uma cidade chamada Palmeira dos Índios, localizada no interior de Alagoas.

Carlos Vereza, como Graciliano Ramos, no filme Memórias do Cárcere, de Nelson Pereira dos Santos, 1984
Não seria cabível adentrar nos detalhes relacionados à sua eleição para o posto. Aos interessados, recomenda-se o livro O Velho Graça, biografia escrita por Dênis de Moraes merecedora de inúmeras reedições. Mais vale aqui discorrer um pouco sobre a competência e a lisura com que o futuro autor de Vidas Secas (1938) desempenhou-se na tarefa, além de demonstrar um curiosíssimo elo existente entre essa experiência e sua posterior carreira literária. Em sua rápida passagem pela prefeitura de Palmeira dos Índios, pois renunciaria ao cargo em 1930, Graciliano Ramos moralizou as práticas administrativas, saneou as contas do município, promoveu obras nos bairros pobres e sobretaxou os cidadãos mais ricos. Tudo isso em um intervalo de pouco mais de dois anos. Para Elio Gaspari, um dos grandes nomes da imprensa atual, a administração de Graciliano Ramos nessa pequena cidade alagoana deveria ser tomada como exemplo de probidade e impessoalidade no trato da coisa pública. Não à toa, o jornalista costuma recorrer com frequência ao nome do romancista quando precisa dar alguma lição de moralidade aos nossos políticos, sempre dispostos a tratar a República como se esta fosse um quintal de suas casas.

Imagem do filme Vidas Secas, de Nelson Pereira dos Santos, 1963
Mais do que administrar bem a cidade em que vivia, Graciliano Ramos escrevia relatórios periódicos para prestar contas de sua gestão à comunidade e ao governador. Tais relatórios, como devem saber aqueles que têm um pouco mais de intimidade com a obra do autor, eram verdadeiras pérolas literárias, pois já continham, em embrião, aquele inconfundível estilo contido, sóbrio, de uma correção ímpar, que caracterizaria a maior parte de seus livros (Angústia, de 1936, seria, talvez, a exceção à regra). Aquele estilo, como diria o crítico literário Antonio Candido, em um estudo importante sobre Graciliano Ramos chamado Ficção e Confissão, no qual se destaca “[...] a suprema expressividade da linguagem, assim como a secura da visão de mundo e o acentuado pessimismo, tudo marcado pela ausência de qualquer chantagem sentimental ou estilística”. Ao se desincompatibilizar da prefeitura, renunciando ao mandato para assumir a direção da Imprensa Oficial do Estado de Alagoas, em Maceió, Graciliano Ramos redigiu um relatório final que seria publicado no Diário Oficial e em outros jornais. Uma cópia dele acabou chegando às mãos do poeta e editor Augusto Frederico Schmidt, que, impressionado com a singularidade da escrita, ao ficar sabendo que o ex-prefeito preparava um romance (Caetés), garantiu sua publicação antes mesmo de a obra ficar pronta. E assim se sucedeu. Anos depois esses relatórios sairiam em livro numa edição póstuma intitulada Viventes das Alagoas (1962). Vale a pena recorrer a uma citação algo longa para que se possa comprovar os precoces traços de estilo presentes nesses relatórios, transcrevendo alguns trechos do primeiro deles, de 1928:

“Ao governo de Estado de Alagoas
Exmo Sr. Governador:
Trago a V. Exa. um resumo dos trabalhos realizados pela prefeitura de Palmeira dos Índios em 1928.
Não foram muitos, que os nossos recursos são exíguos. Assim, minguados, entretanto, quase insensíveis ao observador afastado, que desconheça as condições em que o Município se achava, muito me custaram.


COMEÇOS
O principal, o que sem demora iniciei, o de que dependiam todos os outros, segundo creio, foi estabelecer alguma ordem na administração. Havia em Palmeira inúmeros prefeitos: os cobradores de impostos, o comandante de destacamento, os soldados outros que desejassem administrar. Cada pedaço do Município tinha a sua administração particular, com prefeitos inspetores de quarteirões. Os fiscais, esses, resolviam questões de polícia e advogavam.
Para que semelhante anomalia desaparecesse, lutei com tenacidade e encontrei obstáculos dentro da Prefeitura e fora dela – dentro, uma resistência mole, suave, de algodão em rama, fora, uma campanha sorna, oblíqua, carregada de bílis. Pensavam uns que tudo ia bem nas mãos de Nosso Senhor, que administra melhor que todos nós; outros me davam três meses para levar um tiro. Dos funcionários que encontrei em janeiro do ano passado restam poucos: saíram os que faziam política e os que não faziam coisa nenhuma. Os atuais não se metem onde não são necessários, cumprem as suas obrigações e, sobretudo, não se enganam em contas. Devo muito a eles.
[...]

ADMINISTRAÇÃO
A administração municipal absorveu 11:457$497 – vencimento do prefeito, de dois secretários (um efetivo, outro aposentado), de dois fiscais, de um servente, impressão de recibos, publicações, assinatura de jornais, livros, objetos necessários à secretaria, telegramas. Relativamente à quantia orçada, os telegramas custam pouco. De ordinário vai para eles dinheiro considerável. Não há vereda aberta pelos matutos, forçados pelos inspetores, que prefeitura do interior não ponha no arame, proclamando que a coisa foi feita por ela; comunicam-se as datas históricas ao governo do Estado, que não precisa disso; todos os acontecimentos políticos são badalados. Porque se derrubou a Bastilha – um telegrama; porque se deitou uma pedra na rua – um telegrama; porque o deputado esticou a canela – um telegrama. Dispêndio inútil. Toda gente sabe que isto por aqui vai bem, que o deputado morreu, que não choramos e que em 1556 D. Pedro Sardinha foi comido pelos Caetés.
[...]

TERRAPLENO DA LAGOA
O espaço que separa a cidade do bairro da Lagoa era uma coelheira imensa, um vasto acampamento de tatus, qualquer coisa deste gênero. Buraco por toda a parte. Durante meses mataram-me o bicho do ouvido com reclamações de toda ordem contra o abandono em que se deixava a melhor entrada para a cidade. Chegaram lá pedreiros, outras reclamações surgiram, porque as obras irão custar um horror de contos de réis, dizem. Custarão alguns, provavelmente. Não tanto quanto as pirâmides do Egito, contudo. O que a prefeitura arrecada basta para que nos não resignemos às modestas tarefas de varrer as ruas e matar cachorros. Até agora as despesas com o serviço da Lagoa sobem a 14:418$627. Convenho em que o dinheiro do povo poderia ser mais útil se estivesse nas mãos, ou nos bolsos, de outro menos incompetente do que eu; em todo o caso, transformando-o em pedra, cal, cimento, etc., sempre procedo melhor que se distribuísse com os meus parentes, que necessitam, coitados.”


Mesmo se tratando de uma amostra pequena, versando sobre coisas comezinhas, já se percebe nesse relatório a manifestação de uma verdadeira “personalidade literária”. Daí a acreditar que essa “personalidade” poderia se tornar um escritor viável vai, é claro, uma enorme diferença. Sendo assim, não se pode deixar de louvar o faro editorial de Augusto Frederico Schmidt, cuja perspicácia de poeta possibilitou a revelação de um dos maiores prosadores da língua portuguesa, algo que nem ele, obviamente, sequer poderia ter imaginado. Sua iniciativa ajudou a enriquecer não só a literatura mas também o cinema daqui, visto que nenhum outro romancista brasileiro teve a sorte de ser tão bem adaptado na transposição de uma linguagem para outra como Graciliano Ramos. Basta dizer que três de seus principais livros deram origem a três grandes filmes: Vidas Secas (1963) e Memórias do Cárcere (1984), dirigidos por Nelson Pereira dos Santos; e São Bernardo (1972), dirigido por Leon Hirszman. Como tais adaptações mereceriam uma postagem à parte, é melhor parar por aqui, ao modo dos folhetins, deixando o leitor na expectativa pelo próximo capítulo, sabendo ele desde já que os inúmeros “veios” abertos pelo escritor alagoano não se esgotam facilmente. 

por Rodrigo Morais
Compensa:

 MORAES, Dênis de. O Velho Graça:uma biografia de Graciliano Ramos.



CANDIDO, Antonio. Ficção e Confissão: Ensaio sobre Graciliano Ramos.







Coluna: Literatura



Hectoplasma! Meia dúzia de filmes assombrados por aparições e fantasmas

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Os Caça-Fantasmas
Ghostbusters, 1984
Dir. Ivan Reitman
Com Bill Murray, Dan Aykroyd, Sigourney Weaver


O Iluminado
The Shining, 1980
Dir. Stanley Kubrick
Adaptado do livro de Stephen King
Com Jack Nicholson


Os Outros
The Others, 2001
Dir. Alejandro Amenábar
Com Nicole Kidman


O Sexto Sentido
The Sixth Sense, 1999
Dir. M Night Shyamalan
Com Bruce Willis


Poltergeist, o fenômeno
Poltergeist, 1982
Dir. Tobe Hooper
Escrito e produzido por Steven Spielberg


Os Fantasmas se Divertem
Beetlejuice, 1988
Dir. Tim Burton

Com Michael Keaton, Geena Davis, Winona Ryder




Søren Kierkegaard e o caos dentro do coração

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por Homero Nunes

Copenhague é a cidade das bicicletas, da civilização, de Søren Kierkegaard. Lugar da liberdade individual, reino da organização, asséptica. Ética protestante. Também comporta o caos dentro de si, na cidade livre de Christiania, comuna independente ocupada, área invadida desde os anos 60. Os hippies e anarquistas românticos conseguiram criar no coração do cosmos o reduto do caos. Contradição em forma de ilha. Algo de estranho no reino da Dinamarca.

Estranho também é logo ali ter nascido o existencialismo, ainda na primeira metade do século XIX, muito antes de Christiania. Do frio báltico, brotaram as ideias que trariam a angústia, a crise, a desilusão de gerações. Kierkegaard foi o primeiro dos existencialistas, colocando a angústia no centro da filosofia: O Desespero Humano.

Sartre, Heidegger, Husserl e todo o pensamento humanista do século XX deveriam vislumbres a Kierkegaard. Um menino sufocado pelo pai luterano, negociante rico, pessoa séria, sem diversões, sem brechas a tentações mundanas. Queria que o filho fosse comerciante, que levasse adiante os negócios da família. O “espírito do capitalismo” era sinal da predestinação, da salvação da alma e da família, a prova do caráter pelo trabalho árduo. Sem escusas. Na escola deveria ser sempre o terceiro da classe, para não deixar a vaidade aflorar, para não chamar atenção. A inteligência maior, a aptidão para o conhecimento, a aprendizagem fácil não era desculpa para a soberba. Devia errar de propósito para ser o terceiro da turma, nem o segundo servia. Na juventude foi mandado à viagem, em missões comerciais de grande responsabilidade, para aprender a negar o ócio, o negócio. Portos e docas, estivas e galpões empoeirados. Gentes rudes, paus mandados, burgueses ambiciosos, senhores de olhos de vidro e os donos do mundo. Devia conhecer a todos, sentir a dureza da vida para ser capaz de assumir a cadeira quando lhe faltasse o pai. Única dimensão da vida, a responsabilidade.

Kierkegaard por Athamos Stradis 2013


Mas queria “o grande Manitou dissimulado atrás do destino” que o jovem Søren guardasse o caos dentro de si, em seu coração. Com a morte do pai, a queda do totem, viu-se riquíssimo em um mundo de liberdade. Tabernas, bordéis, álcool, mulheres más. Pior, tinha agora o pensamento livre. Não mais era obrigado aos números e tabelas, aos livros-caixa, nada. De madrugadas em dias, Kierkegaard correu solto na fase estética da vida, sorvendo prazeres objetivos, tratando tudo como meio de si, todos como coisas. Estético, voltado para fora, hedonista no verão da juventude. Enfim, apaixonou-se: Regine.

Moça de família, respeito puro, cheia de amarras morais, protestante também. Linda, em forma e jeito, educada para a eternidade do compromisso. Ele lhe caiu aos pés, aos braços dados no passeio público. Tiveram uma relação à moda antiga, sem carne, muita sedução em longos diálogos. Dias felizes demais para quem tinha o caos no coração, insuportáveis. A felicidade se tornou angústia, o jovem Søren viajando agora dentro de si, buscando construir a si mesmo, iniciando a fase ética da vida. Delirou que aquilo tudo era fachada demais, que ele não era merecedor de Regine, que a usava como coisa, reificando a relação de amor. Deu à melancolia, em dias sombrios, gelados como o inverno báltico. Por fim jogou tudo ao vento, deixou-a em prantos, em decepção traumática quando desfez o noivado sem explicações. Não era nada com ela, dizia, era ele mesmo o culpado de tudo. Desculpa fatal, ainda hoje bastante usada, descrita no livro que tentou explicar: O Diário de um Sedutor. Nele, autoflagelava-se em melancolia e desespero ao dizer que o dever era maior que ele, que precisava fazer a coisa certa a qualquer custo, inclusive o sacrifício de si. Tentando ser ético, buscando o autoconhecimento, encontrou o monstro interno, o caos que habitava o coração. Não era digno de Regine, a fina flor do sentimento mais elevado do universo. Precisava sofrer tudo, talvez o suicídio, para purificar os princípios que o guiavam, racionalmente, filosoficamente.

Mas a razão não era suficiente para acalmar a alma, caiu em desespero. O desespero mais puro, aquilo que todos os homens têm em comum um dia na vida, o desespero humano, doença mortal. Pensamentos cortantes, pulsos, gargantas, cordas, alturas, venenos e o éter. Confiava à racionalidade a resposta que precisava, segurava-se à razão como âncora, firmeza colossal desde Platão, desde Sócrates. Mas continuava afundando, conhecer a si mesmo era enfrentar o abismo. A ironia socrática era demasiado cruel naquele momento. Dilacerado em desespero.

Enfim, deu “um salto no escuro”, além da razão, muito além do estético ou do ético, na religião. Fé cega, faca amolada. Cortou a angústia em pedaços, arrefeceu o coração, dominou o caos no salto irracional para o cosmos. Deus foi quem salvou Kierkegaard do desespero. O remédio para as angústias, a metadona, o que Marx chamaria em anos próximos de “o ópio do povo”.

O existencialismo cristão de Kierkegaard seria adiante refutado pelos ateus do existencialismo francês, mas como angústia do próprio pensamento existencial. Um desespero que todos teriam, mas sem a saída do cristianismo. De qualquer forma, Søren Kierkegaard deixaria a fase ética martelando em todas as cabeças, a responsabilidade na construção de si, a condenação da liberdade... ao ponto que Albert Camus um dia afirmou que “a única questão verdadeiramente filosófica é o suicídio”. Na poética de Shakespeare: “ser ou não ser, eis a questão”.



Na Copenhague secular, as torres únicas das igrejas protestantes ainda se erguem sobre o horizonte de prédios históricos da época de Kierkegaard, o inverno rigoroso ainda esfria as relações e a cerveja, a ética protestante configura como nunca o “espírito do capitalismo”, mas o caos ainda habita o coração da cidade, em Christiania. Muitas angústias na vidinha, muitas crises existenciais na metrópole, muito controle social e tudo certinho demais, todo mundo atravessando na faixa. Mas o caos está a ruas de distância de casa, em hippies fugidos de Woodstock, anarquistas românticos de histórias em quadrinhos, hortas comunitárias, sem polícia, sem leis, tudo ao léu. Crises existenciais resolvidas com escolhas livres. Ou sexo, drogas e rock n’ roll. Ou zen budismo. Ou em fazer o que se quer, a qualquer hora. Existencialismo puro no humanismo hippie: cada um que construa a si mesmo, enfrentando o caos de dentro, eticamente. Todos condenados à liberdade, bicho. Logo na entrada está a famosa placa: “você está deixando a União Europeia – Bem-vindos à cidade livre de Christiania”.


De Kierkegaard, compensa:
O Desespero Humano, 1849
O Conceito de Angústia, 1844
Temor e Tremor, 1843
O Diário de um Sedutor, 1843




Kind of Blue e o tempo que perdi sem escutar Miles Davis

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por Homero Nunes


Kind of Blue, de Miles Davis é o disco de jazz mais vendido no mundo. Em 2009 o LP completou 50 anos e por isso algumas publicações a respeito começaram a aparecer na minha frente. Por vezes resisti à leitura, mas acabei me entregando ao título da matéria: “a trilha sonora do céu”. Nem sei quem escreveu aquilo, mas ecoava a efeméride do disco ao parafrasear o New York Times, de 1959, ano do lançamento. Os adjetivos eram: gênio, transformador, fundamental, histórico, clássico, definitivo. Afinal, o que cargas d’água tinha aquele disco para ser tão importante?


Garimpei o vinil na internet. Alguém dizia que a versão Mono era melhor que a Stereo, outro dizia que não. Enfim, encontrei uma edição comemorativa dos 50 anos, com as duas versões, em vinil de 180 gramas. Caro, especial o álbum. Assim, em vinis de grande gramatura, Mono e Stereo, fui apresentado ao gênio de Miles Davis.

Miles Davis, por Anton Corbijn, 1985
Poutz! Atrasado, defasado, conheci tardiamente o trompete de Miles Davis. Não pude acreditar em quanto tempo eu perdi sem escutar aquele som. Tardiamente fui entender o que era o jazz, além da música lenta tocada no elevador. Não, não era coisa de pedantes e de gente sofisticada. Era um tipo de tristeza, linda, a kind of blue.

O disco foi um marco na história do jazz pela simplicidade, honestidade, sem muitos recursos, com grandes músicos tocando música boa, gravada com qualidade. Apenas saxofone, baixo, piano, bateria e o trompete de Miles Davis. Mais que isso foi a criatividade, a fusão de ritmos, a reinvenção do jazz, o auge da música negra americana, “a trilha sonora do céu”.

Miles Davis era o gênio por trás de tudo, inovador, revolucionário, um arquiteto da música, um criador. Aberto a influências múltiplas, fusões sonoras, experimentações, rompimentos, quebraduras, modalidade. Escolheu a dedo os músicos do disco: John Coltrane, Julian "Cannonball" Adderley, Bill Evans, Paul Chambers, Wynton Kelly e Jimmy Cobb. E com eles gravou o melhor disco de jazz da história.


Kind Of Blue
Columbia Records, 1959
Gravado em duas sessões, em 2 de Março e 22 de Abril de 1959
no 30th Street Studio em Nova York.

Compensa o mini-documentário:
Celebrating a Masterpiece: Kind of Blue
por Michael Cuscuna, 2009



Coluna: Música


Animal Farm: os 70 anos d'A Revolução dos Bichos

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por Homero Nunes


Em 17 de agosto de 1945, George Orwell lançava o livro Animal Farm. Escrito durante a Segunda Guerra Mundial, da qual tomou parte como correspondente da BBC, A Revolução dos Bichosé uma sátira e uma crítica contundente sobre como as coisas funcionam quando alguns grupos revolucionários chegam ao poder. Porcos, cães, ovelhas, galinhas e o velho cavalo puxador de carroça são os personagens-metáforas que figuram a história por trás da história. Animalismo. Pequeno, de linguagem fácil e acessível, com tiradas de humor e estocadas críticas, cheio de frases de efeito, o livro é um dos maiores sucessos editoriais de todos os tempos, um dos mais vendidos, dos mais lembrados nas listas dos melhores do século XX.

Como uma paródia da Revolução Russa e seus personagens, assim como do regime stalinista e seus excessos, Orwell nos conta a história de uma fazenda cujos animais se rebelam contra a opressão do dono e tentam implantar o Animalismo, um regime igualitário e socialmente mais justo. A utopia de uma sociedade perfeita. Deu errado, pela corrupção e pela febre de poder, sem mais spoilers.

O velho Major barbudo cheio de ideias como Marx, cheio de ordens como Lênin, o intelectual Bola de Neve em devaneios como Trotsky, o truculento Napoleão violento como Stalin, todos porcos, a vanguarda revolucionária. Os cães militares. O resto dos animais como o resto do povo. Destaque para o burro trabalhador, alienado, como o trabalhador burro.

Um livro de literatura sobre a história do século XX, muito atual. Como amostra, segue abaixo uma seleção de frases dos animais de George Orwell, Ipsis Litteris:


Todos os animais são iguais, mas alguns são mais iguais que os outros.

Quatro patas bom, duas patas ruim.

Qualquer coisa que ande sobre duas pernas é o inimigo.

Moinho ou não moinho, dizia ele, a vida seguiria como sempre - ou seja, mal.

Enfrentemos a realidade: nossa vida é miserável, trabalhosa e curta.

O trabalho é estritamente voluntário, mas qualquer animal que se abstenha dele terá sua ração cortada pela metade.

Os burros têm vida longa. Nenhum de vocês ainda viu um burro morto.

O homem é a única criatura que consome sem produzir.

Os homens não servem aos interesses de nenhuma criatura exceto aos seus próprios.

A marca distintiva do Homem é a mão, instrumento com o qual faz todo o mal.

Muitos teriam protestado, se tivessem encontrado os argumentos corretos.

O homem é o único verdadeiro inimigo que temos. Retirando o Homem da cena, a causa principal da fome e do excesso de trabalho desaparecerá para sempre.

Lembrai-vos também que na luta contra o homem não devemos ser como ele. Mesmo quando o tenhais derrotado, evitai-lhe os vícios.

Os bichos tinham como certo que as frutas deveriam ser distribuídas equitativamente; certo dia, porém, chegou a ordem para que todas as frutas caídas fossem recolhidas e levadas ao depósito das ferramentas, para consumo dos porcos.  Alguns bichos murmuraram a respeito, mas foi inútil. Os porcos estavam todos de acordo sobre esse ponto. Nosso único objetivo ao ingerir essas coisas é preservar nossa saúde. O leite e a maçã (está provado pela Ciência, camaradas) contêm substâncias absolutamente necessárias à saúde dos porcos. Nós, os porcos, somos trabalhadores intelectuais. A organização e a direção desta granja repousam sobre nós. Dia e noite velamos por vosso bem-estar. É por vossa causa que bebemos aquele leite e comemos aquelas maçãs.

Ah, mas isso é diferente. Se o camarada Napoleão diz, deve ser o certo, então.

Já naquela altura, depois de tanto abuso, era impossível distinguir o homem do porco.



Baixe o livro em:















O cinema fez duas boas adaptações de Animal Farm:
1) uma animação de 1954
A Revolução dos Bichos : Poster


2) uma filmagem daquelas que os bichos falam e interagem, de 1999




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Exposição celebra a obra de um gênio do teatro

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por Rodrigo Morais
Tadeusz Kantor 1915-1990
Foi inaugurada recentemente em São Paulo uma exposição imperdível, dedicada à obra de um dos maiores artistas do século XX, o encenador polonês Tadeusz Kantor (1915-1990). Se você nunca ouviu falar nele, não se preocupe: fora da restrita esfera das artes cênicas, pouca gente teve essa felicidade. Pois saiba que, além de ter sido um destacável artista plástico, criador de pinturas, performances e happenings antológicos, a importância de Tadeusz Kantor para a história do teatro equivale à de nomes como, por exemplo, Bertolt Brecht ou Constantin Stanislavski. Em relação ao teatro contemporâneo, a influência de sua obra é capital. Sendo 2015 o ano do centenário de seu nascimento, estão previstos uma série de eventos dedicados à sua impagável figura, espalhados por cidades como Edimburgo, Quioto, Los Angeles, Nova York, Pequim e Toulouse. Coube a São Paulo um papel especial nessa efeméride, ao abrigar a exposição Máquina Tadeusz Kantor, que conta com boa parte do acervo pertencente à Cricoteka, a instituição responsável em zelar pelo espólio do artista, sediada na Cracóvia. Em cartaz no Sesc Consolação, Máquina Tadeusz Kantor permanecerá na capital paulista até 14 de novembro, uma oportunidade única para que o público em geral conheça um pouco do universo kantoriano (sim, seu nome já está adjetivado).

Wielopole, Wielopole - 1980
Nascido em uma pequena cidade chamada Wielopole, foi na Cracóvia que Tadeusz Kantor estudou e fez carreira como artista de vanguarda, no melhor sentido do termo. Lá ele se formou em belas-artes e se iniciou no teatro, criando um grupo clandestino no período mais agudo da ocupação nazista, responsável pelos espetáculos Balladyna (1942) e O Retorno de Ulisses (1944). Terminada a guerra, Kantor trabalhou alguns anos como cenógrafo autônomo, até que, em 1955, fundou o Teatro Cricot 2, grupo com o qual entraria para a história. Com ele, Kantor deu à luz algumas obras memoráveis, umas mais outras menos ligadas ao teatro propriamente dito, não obstante sua repercussão ainda se circunscrever às fronteiras da Polônia e adjacências. São dessa fase os espetáculos No Pequeno Solar (1961) e O Armário (1966), além de certos happenings como A Carta (1967) e A Lição de Anatomia Segundo Rembrandt (1968). Todos eles, vale lembrar, devidamente contemplados na exposição, por meio de objetos, fotos ou performances realizadas por atores nos corredores da mostra.

Atores  na Mostra
Tudo mudou a partir de 1975, quando Tadeusz Kantor lançou A Classe Morta, sem dúvida um dos espetáculos mais importantes do século XX. Ao levá-lo em excursão com o Cricot 2 para Londres e outros centros do mundo capitalista, Kantor adquiriu renome internacional, deixando público e crítica ocidentais simplesmente embasbacados com a singularidade de seu teatro. Valendo-se de uma gama ampla de elementos cênicos, farta na utilização de objetos e bonecos sem, contudo, abdicar dos atores de carne e osso, o que se apresentou nesse espetáculo era algo que se poderia definir, para efeitos didáticos, como um ready-made vivo. Sem conferir nenhuma primazia ao texto, igualado, em grau de importância, a todos os outros itens da cena, a poética de Kantor se tornaria, a partir de então, um dos pilares daquilo que, em 1999, o teórico alemão Hans-Thies Lehmann designou de teatro pós-dramático, conceito polêmico mas bastante em voga no panorama teatral paulistano.

A Invenção do Sr. Daguerre
De todo modo, depois de A Classe Morta seguiram-se outros espetáculos marcantes, que sedimentaram ainda mais o prestígio de Tadeuzs Kantor no ocidente. Semelhante sucesso, como não poderia deixar de ser, jogou luz sobre os trabalhos anteriores, que também ganharam seu devido quinhão de reconhecimento, ainda que extemporâneo. Sendo Máquina Tadeusz Kantor uma exposição esmerada, nela se encontram objetos ligados a essas duas “fases”, além de pinturas e desenhos deixados pelo artista polonês, quase tudo exposto dentro de uma enorme estrutura de metal construída no ginásio do Sesc Consolação. Fora desse complexo, uma das principais atrações é a Máquina de Aniquilamento, objeto criado para a performance O Louco e a Freira, de 1963, uma parafernália de cadeiras velhas que se movem empilhadas sobre uma pequena plataforma de madeira. Do período posterior a A Classe Morta, destaque-se a A Invenção do Sr. Daguerre, objeto do espetáculo Wielopole, Wielopole (1980), mistura de câmera com metralhadora que se transformou em um dos símbolos máximos do teatro de Kantor.

Máquina de Aniquilamento:

Curiosamente, alguns anos antes de se tornar famoso mundo afora, Tadeusz Kantor participou, em 1967, da Bienal de São Paulo, apresentando uma série de pinturas chamadaEmballage, com a qual obteve o segundo lugar na categoria (a mostra à época era competitiva). Mesmo assim, seu nome passou desapercebido. Anos depois, quando já era impossível falar em teatro contemporâneo sem se referir a ele, a influência de sua obra chegaria aos palcos brasileiros pelas mãos, especialmente, de Antunes Filho e Gerald Thomas, como destacaram todas as matérias produzidas até agora sobre a exposição na grande imprensa. Posicionando-se sempre na vanguarda, Kantor não fugiu à regra, típica entre seus pares, de escrever manifestos. O mais famoso deles, chamado O Teatro da Morte, lançado na época de A Classe Morta, tornou-se, no Brasil, o título do volume que agrega seus escritos mais importantes, publicados em 2008 pela Editora Perspectiva em parceria com as Edições Sesc SP. Ler esses textos é interessante não só para acompanhar a trajetória do artista em termos conceituais (Teatro Informal, Teatro Zero, Teatro-Happening etc), mas também para compreender melhor o teatro realizado dos anos de 1970 para cá, na medida em que Kantor, mais do que um encenador de gênio, foi um grande teórico da cena. O nome O Teatro da Morte diz respeito, entre outras coisas, à enorme importância conferida por Kantor em seu trabalho à história da Polônia, com toda certeza o maior “saco de pancadas” da Europa, invadida, destruída e pilhada inúmeras vezes por tropas estrangeiras. Conforme diz uma passagem do programa da exposição, a partir de A Classe Morta “[..] o teatro se tornou uma supermáquina por ele empregada em suas tentativas de recriar eventos passados”. Partindo desse pressuposto, Máquina Tadeusz Kantor seria uma viagem por entre as engrenagens de sua obra e por entre os escombros de sua terra natal, ao término da qual não se sai indiferente.


A Classe Morta (1975):

Wielopole, Wielopole (1980):

Compensa: 
O Teatro da Morte (2008), de Tadeusz Kantor

Coluna: Teatro

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A Roma Antiga em Mármore e Tinta a Óleo

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por Rodrigo Morais
rapto de uma Sabina, de Giambologna1581/82, mármore, alt. 410 cm. Florença, Loggia dei Lanzi.
A Roma Antiga já serviu de pretexto à criação de inúmeras obras de arte, nos mais diversos seguimentos. Na literatura, por exemplo, se poderia citar o poema A Violação de Lucrécia(1594), de William Shakespeare, ou os romances Quo Vadis (1895) e Memórias de Adriano (1951), de Henryk Sienkiewicz e Marguerite Yourcenar, respectivamente. No teatro, impossível não lembrar de algumas peças do próprio Shakespeare, como Júlio César (1599) e Coriolano (1608), além, é claro, de Britânico (1669) e Berenice (1670), de Jean Racine, e Calígula (1944), de Albert Camus. Em relação ao cinema, os exemplos são tão profusos que é melhor nem transcrevê-los aqui, na certeza de que o leitor conhece ao menos uns cinco filmes cuja ação se passa no período histórico em questão. Na televisão, destaque-se a extraordinária série Roma, produzida pela HBO em 2005 e 2006. Contudo, em que pese sua onipresença nas mais variadas manifestações artísticas, é no campo das artes plásticas, provavelmente, que a história romana se acha mais bem representada, há anos ensejando grandes obras em mármore ou tinta a óleo. Dos eventos que marcaram a trajetória latina na antiguidade clássica, muitos dos quais envoltos em lendas, um dos que mais tem despertado a atenção de escultores e pintores é, sem dúvida, o episódio conhecido como o “rapto das sabinas”, supostamente acontecido nos primórdios de Roma.

O Rapto das Sabinas, de Nicolas Poussin, 1634-35, óleo sobre tela, 154,6 x 209,9 cm. Metropolitan Museum of Art, Nova Iorque.
O Rapto das Sabinas, de Nicolas Poussin, 1637-38, óleo sobre tela, 159 x 206 cm. Musée du Louvre, Paris.
Embora a credibilidade desses fatos ligados à fundação da cidade seja muito pequena – quase todos descritos por historiadores como Tito Lívio e Plutarco – a partir do Renascimento, momento de grande valorização do passado greco-romano, retratá-los em telas e esculturas se tornou quase uma obrigação. Segundo consta, para resolver o problema da escassez de mulheres no povoado que fundara, circunstância claramente impeditiva à sua expansão, Rômulo, suposto primeiro rei de Roma, propôs uma solução diplomática: negociar com os sabinos, povo vizinho, a permissão para que as mulheres de lá pudessem se casar com romanos. Não deu certo, visto que os sabinos se recusaram a cedê-las, temendo o surgimento de uma sociedade rival. Na impossibilidade de adquirir as mulheres que desejava por vias pacíficas, Rômulo apelou para uma solução drástica, ou seja, o rapto das sabinas. Para tal, valeu-se de um artifício engenhoso: promover um festival em homenagem a Netuno Equestre e proclamá-lo aos vizinhos de Roma. Convidados a comparecer, os sabinos foram pegos de surpresa quando, após um determinado sinal de Rômulo, os jovens romanos atacaram e sequestraram as mulheres sabinas presentes à cidade, especialmente as donzelas. Em mãos inimigas, essas mulheres teriam sido (nessas ocasiões, melhor utilizar o futuro do pretérito) convencidas-coagidas a se casarem.

O Rapto das Sabinas, de Peter-Paul Rubens, 1635-1640, óleo sobre tela, 170 x 236 cm. National Gallery, Londres.  
A violenta atitude dos romanos deflagrou um conflito armado com os sabinos. Estes, comandados por Tito Tácio, em um determinado momento da guerra sitiaram o Capitólio, então um posto avançado de Roma. Os romanos, posicionados no  Palatino, depois de algumas batalhas se reconciliaram com os vizinhos graças à ação das próprias mulheres raptadas, que intervieram no combate para conclamar a seus pais, de um lado, e a seus maridos, de outro, que não se matassem mutuamente, fazendo delas órfãs ou viúvas. Desde então, diz a lenda, os dois povos se uniram e formaram uma nação única. Seria esse o começo de um processo que, no futuro, especialmente nos anos em que a República vigorou (509 – 27 a.C.), levaria Roma a chamar o Mar Mediterrâneo de mare nostrum, devido à gigantesca dimensão de suas conquistas territoriais.

A intervenção das Mulheres Sabinas, de Jacques-Louis David, 1799, óleo sobre tela, 385 x 522 cm. Musée du Louvre, Paris.
Salvo engano, o primeiro artista da Idade Moderna a se interessar por esse assunto ligado à história latina foi o escultor italiano Giambologna (Giovanni de Bologna), ao criar, em 1582, uma verdadeira obra-prima em mármore intitulada O Rapto de uma Sabina. Surpreendente em todos os ângulos pelos quais se pode observá-la, e esculpida a partir de um só bloco de pedra, a escultura de Giambologna costuma ser incluída por críticos e historiadores como pertencente a um estilo de época chamado de maneirismo, normalmente associado ao final do período renascentista e muito influenciado pelas últimas obras de Michelangelo. Anos depois, Nicolas Poussin, pintor francês que viveu na primeira metade do século XVII, produziu duas grandes versões em óleo sobre tela para o tema, a primeira finalizada em 1635 e a segunda em 1638. Artista de formação e feitio classicistas, Poussin se tornaria, posteriormente, um dos modelos supremos da Real Academia de Pintura e Escultura, a famosa instituição fundada em 1648 por Luis XIV – responsável, entre outras coisas, por alçar a pintura de cunho mítico-histórico ao grau máximo de importância na hierarquia dos gêneros. 


Quem também se interessou pela legendária desdita das mulheres sabinas foi o pintor flamengo Peter Paul Rubens, apresentando sua versão, produzida entre 1635 e 1640, quase na mesma época às de Poussin. Mas as coincidências param por aí, na medida em que, enquanto a obra do último está identificada com o classicismo, a de Rubens se atrela a outra corrente estética, o barroco, ainda que com ressalvas. Todavia, vale pontuar, exemplos como esses são importantes para se perceber a aleatoriedade de certos movimentos estilísticos, que não tiveram o caráter rigorosamente universal e cronológico como, talvez, os manuais de história da arte façam crer. 

O Rapto das Sabinas, de Pablo Picasso, 1962, Centre Georges Pompidou, Paris. 
Atuando num período em que o academismo já estava plenamente consolidado na França, Jacques-Louis David foi outro pintor que conferiu dimensões grandiosas ao tema, embora tenha preferido representar não o momento do rapto, como seus antecessores, mas a interferência das mulheres no desfecho da guerra. Seu estilo, diga-se de passagem, é autenticamente neoclássico. Admirador contumaz da história romana, em especial do período republicano, David fez dessa admiração motivo não só para a criação de muitas de suas pinturas mas, também, de sua atividade política, lembrando que ele foi um destacado deputado jacobino na época da Revolução Francesa e um aliado fiel de Napoleão Bonaparte após sua fulminante ascensão ao poder. Não à toa, A Intervenção das Mulheres Sabinasé de 1799, exatamente o ano em que, após tornar-se primeiro-cônsul, foi possível a Bonaparte pacificar a França, pelo menos internamente. Qualquer semelhança alegórica não é mera coincidência. Por fim, resta proferir algumas palavras sobre a contribuição de Pablo Picasso a essa temática, que legou uma série de telas dedicadas a ela. Pintadas entre 1962 e 1963, tais obras são, na realidade, releituras mais ou menos próximas dos quadros de Poussin e David, que vieram à luz por ocasião da crise dos mísseis em Cuba, quando o mundo se viu diante de uma provável hecatombe nuclear. Dotadas daquele estilo inconfundível de Picasso, com suas figuras geometrizadas, a série é mais um exemplo de como a mitologia e a história romanas podem servir aos mais diversos propósitos simbólicos. E olha que existem outras versões dessa mesma lenda, realizadas por outros artistas, que não puderam ser contempladas nesta postagem mas que, provavelmente, mantêm alguma relação figurada com o período histórico em que surgiram. Um prato cheio para romanófilos e amantes das artes em geral. 

O Rapto das Sabinas, de Pablo Picasso, 1963, Museum of Fines Arts, Boston.

por Rodrigo Morais

Coluna: Arte


Cuspe e giz: meia dúzia de grandes professores do cinema

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John Keating
por Robin Williams
Sociedade dos Poetas Mortos
Dead Poets Society, 1989

Oh Captain, my Captain! Dos versos de Walt Whitman às páginas rasgadas dos manuais de literatura, o professor Keating é o queridinho entre todos de todos os filmes de professor de todos os tempos. Inspirador, subversivo, sensível, poeta morto daquela sociedade. Ensinou aos alunos o caminho da caverna e o gosto pela leitura, propôs que tentassem novos ângulos de visão do mundo e, sobretudo, que aproveitassem o dia, carpe diem. Incomodou um tanto de gente acomodada. Como Sócrates, sem a cicuta, foi sacrificado por corromper a juventude e duvidar dos mitos.



Guilherme de Basquerville
por Sean Connery
O Nome da Rosa
The Name of the Rose, 1986

Um monge racionalista dentro das trevas medievais, o mestre Guilherme de Basquerville usava a observação, a lógica, a análise, o procedimento e o rigor científicos para desvendar os mistérios do mundo e desmascarar o suposto demônio. Dedos e línguas pretas que levaram à comédia de Aristóteles e à biblioteca escondida, acúmulo de saber no labirinto proibido pela Igreja. Por usar a inteligência e recusar a ignorância dogmática, foi acusado de heresia e escapou por pouco da fogueira dos malditos. Que Deus nos perdoe pelos spoilers deste post.



Dom Gregório
por Fernando Fernán Goméz
A Língua das Mariposas
La Lengua de Las Mariposas, 1999

O velho professor – de cordas vocais calejadas, de olhar cansado, na elegância da idade e do saber acumulado – foi a mudança na vida de um menino medroso do mundo. Eram tempos difíceis aqueles que precederam a Guerra Civil Espanhola, disciplina e violência cercavam os lugares, inclusive a escola. Mas Dom Gregório era um homem de ideias livres, respeito e posição intelectual. Dos alunos, de um deles pelo menos, foi o exemplo da integridade, do caráter que forma o caráter dos outros. Acabou levado por aqueles de duvidoso caráter, sem defesa pelo medo de todo mundo.



Burt Ross / Rainer Wenger
por Bruce Davison e Jügern Vogel
A Onda
The Wave, EUA, 1981
Die Welle, Alemanha, 2008

Um professor em duas versões da mesma história. N’A Onda que explicava a expansão e disseminação do Nazismo através de um experimento didático, alunos mergulhados em distorções ideológicas e relações de poder na escola. O professor fazia assim a história emergir da prática, o aprendizado pela experiência, a reflexão pelas próprias atitudes. Manipulação, persuasão, influência, comportamento. Foi longe demais.



François Marin
François Bégaudeau
Entre os Muros da Escola
Entre les Murs, 2008

Monsieur Marin é o professor de alunos plurais em uma escola na periferia de Paris. Multicultural, multiétnica, multitudo, a turma é uma bomba para o sistema tradicional de educação, aquele que escolhe os melhores alunos e descarta os desencaixados. O professor Marin é o destemido cavaleiro andante que enfrenta os moinhos de espremer gentes a caminho de uma educação inclusiva, também plural, humana acima das diferenças, sem reduzir a diferença ao padrão. A educação apesar de tudo, a educação acima de tudo.

Curiosidade: o professor do filmeé interpretado pelo próprio professor François Bégaudeau, autor do livro que deu origem ao filme.



Daniel Lefebvre
por Philippe Torreton
Quando Tudo Começa
Ça Commence Aujourd'hui, 1999

Não basta a sala de aula, é preciso ampliar a sala de aula. O professor Daniel Lefebvre ensina crianças, mas é um sujeito preocupado com o entorno, com a comunidade, com o ambiente, com tudo aquilo que faz a educação possível e com tudo aquilo que a educação pode tornar possível. Em meio aos problemas econômicos, sociais, políticos, burocráticos etc. que embarreiram a vida dos alunos e das famílias deles, um sujeito que acredita no papel da educação para transformar a realidade, para mudar o mundo. Um professor lutador, como tantos.


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