Quantcast
Channel: ISSO COMPENSA
Viewing all 82 articles
Browse latest View live

Paris toujours Paris: uma seleção de frases e citações para iluminar a cidade e o coração

$
0
0
We’ll Always have Paris.
Nós sempre teremos Paris.
Rick Blaine (H. Bogart)
Casablanca, 1942

Eugène Delacoix, La Liberté Guidant le Peuple, 1830
Paris é sempre uma boa ideia.
Audrey Hepburn

Quando a gente acorda de bom humor é sinal que a gente está em Paris.
Murilo Mendes

Nenhum artista tem casa na Europa exceto em Paris.
Friedrich Nietzsche

A América é o meu país e Paris é a minha cidade.
Gertrude Stein

Deus sabe que, quando a primavera chega a Paris, o mais humilde dos mortais deve sentir-se no paraíso.
Henry Miller

O maior perigo sobre Paris é que ela é um tremendo estimulante.
T.S. Elliot

Jean Béraud, Le Boulevard St. Denis, 1875-90
Errar é Humano. Flanar é parisiense.
Victor Hugo
Os Miseráveis, 1862

Não há nada além de Paris, e por mais difícil que a vida possa ser aqui, o ar francês limpa o cérebro e faz bem, muitíssimo bem.
Vincent Van Gogh
Em carta à Theo, o irmão, 1887

Existem apenas dois lugares no mundo onde se pode viver feliz: em casa e em Paris.
Ernest Hemingway

Se você quando jovem teve a sorte de viver em Paris, então a lembrança o acompanhará pelo resto da vida, onde quer que você esteja, porque Paris é uma festa ambulante.
Ernest Hemingway
A Moveable Feast, 1964

Renoir, Bal du Moulin de la Galette, 1976
Paris não tem fim, e as recordações das pessoas que lá tenham vivido são próprias, distintas umas das outras. Mais cedo ou mais tarde, não importa quem sejamos, não importa como o façamos, não importa que mudanças se tenham operado em nós ou na cidade, a ela acabamos regressando. Paris vale sempre a pena e retribui tudo aquilo que você lhe dê.
Ernest Hemingway
A Moveable Feast, 1964
(último parágrafo)

Qualquer um que não visite Paris regularmente nunca será realmente elegante.
Honoré de Balzac

Em Paris todos querem ser atores, ninguém está contente em ser espectador.
Jean Cocteau

Paris responde a tudo que um coração deseja.
Frederic Chopin

Os segredos viajam rápido em Paris.
Napoleão Bonaparte

Paris é a única cidade no mundo na qual morrer de fome é ainda considerado uma arte.
Carlos Ruiz Zafón

Você não pode escapar do passado em Paris, e ainda o que é maravilhoso disso é que o passado e o presente se misturam tão incrivelmente que não parece nenhum fardo.
Allen Ginsberg

O melhor da América deriva a Paris. O americano em Paris é o melhor americano. É mais divertido para uma pessoa inteligente viver em um país inteligente. A França tem as duas únicas coisas para as quais a correnteza nos leva quando envelhecemos – inteligência e boas maneiras.
F. Scott Fitzgerald

Renoir, Pont-Neuf, 1872
O Almoço mata a metade de Paris, o jantar a outra metade.
Montesquieu

Há uma atmosfera de esforço espiritual em Paris. Nenhuma outra cidade tem isso. Eu acordo cedo, muitas vezes às 5 horas, e já começo a escrever.
James Joyce

Toda vez que chego a Paris tenho um ritual particular. Depois de dormir algumas horas, dou uma espanada no rodenirterceiromundista e vou até Notre-Dame. Acendo vela, rezo, fico olhando a catedral imensa no coração do Ocidente. Sempre penso em Joana d’Arc, heroína dos meus remotos 12 anos; no caminho de Santiago de Compostela, do qual Notre-Dame é o ponto de partida — e em minha mãe, professora de História que, entre tantas coisas mais, me ensinou essa paixão pelo mundo e pelo tempo.
Caio Fernando Abreu, 1994

Nunca vemos Paris pela primeira vez; sempre a vemos novamente.
Edmondo de Amicis, 1878

Paris... E, desiludido desta cruel vida, vim pedir ao absinto, no boulevard, uma hora de esquecimento.
Eça de Queiroz
Os Maias, 1888


Claude Monet, Quai du Louvre, 1867




Korda e o guerrilheiro romântico mirando o infinito

$
0
0
por Juliano Mignacca


Fazia frio naquela tarde de sábado em Havana. Algo bem diferente do sol escaldante que costuma pairar sobre Cuba quase todos os dias do ano. Nas ruas, centenas de milhares de pessoas aglomeravam-se para ouvir o discurso inflamado do presidente Fidel Castro naquele 5 de março de 1960. Deslocar-se entre a multidão era tarefa difícil, sobretudo se aproximar do palanque onde estavam os principais líderes da revolução. Um fotógrafo que se acotovelava em busca de um ângulo mais privilegiado consegue, enfim, a posição ideal para disparar o obturador de sua Leica. Ele movimenta a câmera em várias direções para capturar a expressão que melhor traduzisse o sentimento de comoção que então afligia o país. Enquanto fotografava pessoas comuns, ministros e o próprio Fidel, ele avista, um pouco mais afastado, em segundo plano, Ernesto Che Guevara, com sua costumeira boina e vestindo jaqueta de couro. O guerrilheiro avançou alguns passos e, quando parou, lançou um olhar perdido no horizonte. O fotógrafo, quase espontaneamente, teve tempo de clicar duas vezes antes que Che desaparecesse de sua vista. Estava concluída a foto que se tornaria a imagem mais reproduzida no século 20. O fotógrafo em questão era Alberto Díaz Gutiérrez (1928–2001), ou Alberto Korda, como ficou mundilamente conhecido. Na época tinha 31 anos, a mesma idade do revolucionário.


Korda começou sua carreira fotografando a beleza feminina, ótimo atalho para um galanteador nato aumentar suas conquistas amorosas. Com o parco dinheiro que ganhava conseguiu montar seu próprio estúdio. Foi aí que surgiu o nome Alberto Korda, uma homenagem ao cineasta austro-húngaro Alexander Korda. Nessa época trabalhou também com fotos publicitárias e de moda, sendo pioneiro neste ramo em Cuba. Mas a desigualdade e a injustiça social da ilha não demorariam a passar diante de sua lente. Numa visita a um vilarejo no final dos anos de 1950, uma criança pobre com roupas rasgadas brincava com um pedaço de madeira fazendo dele sua boneca. O registro dessa imagem daria um novo rumo ao trabalho do fotógrafo, que resolveu ajustar o foco de sua câmera nos problemas sociais do país. O primeiro passo foi ser voluntário no jornal Revolución, veículo de divulgação das causas revolucionárias. Posteriormente, tornou-se enviado especial do jornal, cobrindo as viagens dos novos líderes. Suas fotos agradaram o gosto de Fidel, que o convidou para acompanhá-lo. Mesmo assim, Korda nunca foi considerado fotógrafo oficial da revolução, e, tampouco, recebia salário.


Numa tentativa de registrar outras imagens de Guevara, Korda viajou para o campo, onde o comandante se encontrava cortando cana com os camponeses. Para sua surpresa, Che pediu que ele pegasse uma foice e cortasse cana por uma semana, pois, somente assim, deixaria ser fotografado. Por essas e outras, não tirou muitas fotos de Che, mas fez aquela que se tornaria um símbolo ainda presente no imaginário das novas gerações. A foto foi realizada durante o funeral das centenas de vítimas do atentado ao navio La Coubre. A embarcação havia chegado da Bélgica trazendo armas e munição no dia anterior. Aproximando-se cada vez mais do bloco socialista, Cuba se aparelhava para qualquer ofensiva dos Estados Unidos, o que veio ocorrer um ano mais tarde com a frustrada invasão da Baía dos Porcos financiada pelos yankees.

A famosa foto de Che não foi selecionada para o jornal do dia seguinte. A imagem que estamparia a edição foi a de Fidel Castro segurando dois explosivos utilizados no ataque ao navio. Sete anos mais tarde, quando Che já estava fora de Cuba, por conta de investidas revolucionárias na África e depois na América do sul, o editor italiano Giangiacomo Feltrinelli visitou a ilha e foi ao estúdio de Korda em busca de fotos do guerrilheiro, cujo paradeiro era desconhecido e, portanto, muito comentado. Korda deu a foto ao italiano sem cobrar absolutamente nada. Isso ocorreu quatro meses antes de o argentino ser assassinado na Bolívia em outubro de 1967. Em agosto, a foto foi publicada na revista Paris Match, sem créditos, em um artigo intitulado Les Guerrilleros. Por volta da mesma época, foi também utilizada em impressão colorida pelo artista plástico irlandês Jim Fitzpatrick.

Mas seria com Feltrinelli que a imagem percorreria o mundo, pois, além de militante de esquerda, o editor era também um milionário. Se é que ambas as coisas podem coexistir ao mesmo tempo sem serem contraditórias. O fato é que com a morte de Che, Feltrinelli imprimiu milhares de pôsteres que, logo em seguida, ganharam as ruas. Resultado de um faro publicitário e ideológico. Uma combinação perfeita, uma vez que é impossível defender uma causa ideológica sem propaganda. Um ano depois, nas manifestações de maio de 68, o pôster foi erguido nas ruas de Paris e, desde então, se fez presente em todos continentes. 

A imagem Guerreiro Heroico, como foi batizada, virou ícone contra a opressão, a desigualdade social e símbolo de resistência. Mas ganhou uma dimensão tão ampla que poderia representar, em tese, qualquer ideologia, o que é contestável. Pode ser encontrada numa passeata que reivindica, por exemplo, direitos humanos, algo um tanto paradoxal em relação ao regime ao qual ela está associada. 


Por outro lado, está estampada em milhões de itens que se proliferaram na cultura capitalista, exatamente o que Che combatia. Não vou me estender nessa questão para não tornar este texto demasiado enfadonho, mas vale a reflexão. De acordo com certos princípios socialistas, as ideias são livres e devem ser compartilhadas, o que explica o fato de não existir direito autoral em Cuba. Ironicamente, graças a isso, a imagem se proliferou pelo mundo. Mesmo sem receber um peso cubano pela foto, Korda não guardava ressentimento, até mesmo porque ele sempre foi um socialista convicto. A revolução e as mulheres eram suas grandes paixões. Talvez a revolução tenha perecido, mas a imagem do guerrilheiro está eternizada. Agora, a beleza feminina fala por si. 


por Juliano Mignacca

Coluna: Fotografia


Beatles: os 50 anos de Rubber Soul

$
0
0
por Rodrigo Morais


Pra começo de conversa: todos os álbuns dos Beatles foram revolucionários. Isso significa dizer que álbuns como Please, Please Me (1963), With the Beatles (1963) e Beatles for Sale (1964), embora ainda impregnados de puerilidade juvenil, já apresentavam, a seu tempo, uma boa dose de inovação em relação ao que havia sido produzido até então na seara do Rock. Se atualmente eles possuem menos prestígio na comparação com os demais, isso se deve à capacidade singular demonstrada pelo quarteto, ao longo de sua curta carreira, em estar sempre na “crista da onda”, ou seja, na vanguarda da música popular ocidental, consciente ou inconscientemente. Contudo, na trajetória evolutiva da banda, cujo talento criativo parecia não ter limites, se houve um momento de maior salto qualitativo entre um trabalho e outro, creio ter sido na ocasião do lançamento de Rubber Soul, que hoje completa 50 anos. Com ele os Beatles teriam atingido a plena maturidade intelectual e artística.


Tal percepção, que não é só minha, evidentemente, poderia ser explicada levando-se em conta inúmeros argumentos, todos válidos e amplamente repisados: a influência do encontro com Bob Dylan e aquele seu “cigarrinho”; a competição acirrada com os Beach Boys (e não com os Rolling Stones, ao contrário do que muita gente ainda acredita); o encantamento pela música oriental; a conquista de uma maior autonomia em relação aos ditames da indústria fonográfica etc. Tudo isso resultou numa evidente hipertrofia formal e temática, revelada na complexidade das harmonias, no cuidado com as melodias e no conteúdo das letras, que adquiriram maior densidade lírica e/ou maior sofisticação de contexto. Com efeito, mesmo não sendo o melhor álbum dos Beatles, Rubber Soul pode ser considerado, em termos históricos, o mais importante deles.


Em se tratando de um trabalho capital dos Beatles, conjunto cuja significação simbólica ultrapassa, e muito, as já amplas fronteiras da música popular, é praticamente impossível trazer, a esta altura do campeonato, alguma grande novidade factual ou mesmo interpretativa a seu respeito. Como quase todo ano há alguma efeméride ligada a um disco dos Beatles, quase todo ano um deles é objeto de curtas ou longas matérias nos cadernos culturais dos grandes jornais ou, mais recentemente, na internet. Se hoje a pauta é Rubber Soul, amanhã será Revolver (1966) e, depois, Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band (1967), até se chegar a Let it be (1970), o último a ser lançado. Na tentativa, talvez infrutífera, de sair um pouco desse ramerrão, que de resto se encontra em qualquer uma das incontáveis biografias (ou se deveria dizer hagiografias) escritas sobre a banda, proponho uma solução de compromisso: sem deixar de lado alguns dados fundamentais, procurarei aqui expressar certas impressões minhas sobre o aniversariante de hoje, no intuito de compor um texto híbrido, meio reportagem, meio crônica. Nada a ver, portanto, com crítica, vale ressaltar.


Das 14 canções de Rubber Soul, tenho particular predileção por sete, a saber: Norwegian WoodYou Won’t See MeNowhere ManMichelleGirlIf a Needed Someone e, óbvio, In My LifeTodas as outras estão naquela categoria que poderia ser assim definida: um pouco abaixo do padrão Beatles de qualidade, muito acima do padrão que hoje impera na músicapopNorwegian Wood é, claramente, uma balada à Bob Dylan, com uma letra também feita ao modo do compositor norte-americano, aparentemente alegórica mas que, em verdade, tratava de uma situação bem concreta: os casos extraconjugais de John Lennon. Norwegin Wood seguia o mesmo “filão” antes explorado por Lennon em You’ve Got to Hide Your Love Away, do LP Help, lançado alguns meses antes de Rubber Soul. Com uma diferença fundamental, é bom lembrar, que seria a utilização da cítara, aquela guitarra indiana pela qual George Harrison havia se encantado desde que a viu em uma gravação do filme Help nas Bahamas. A ideia não demoraria a inspirar outras bandas, como, por exemplo, os Rolling Stones, que no ano seguinte se valeriam do mesmo instrumento, empunhado por Brian Jones, no arranjo da canção Paint it Black.


Tomando-se como referência a lista acima referida, ou mesmo o álbum em sua totalidade, é possível afirmar que as canções (mais) de Lennon se sobressaem em relação àquelas (mais) de Paul McCartney, pelo menos do ponto de vista literário. Enquanto as do primeiro já apresentavam aquela “densidade lírica” (Girl e, principalmente, In My Life) ou aquela “sofisticação de contexto” (Nowhere Man) às quais me referi alguns parágrafos atrás, as do segundo ainda se mostravam atreladas à fase anterior, tratando de problemas amorosos (mais especificamente de seu conturbado namoro com a atriz Jane Asher). Mais novo que Lennon, McCartney se ombrearia ao parceiro em tal seara no disco seguinte, Revolver, graças a canções como Eleonor Rigby e For No One. Levando-se em conta que Rubber Soul e Revolver formariam, juntos, uma espécie de álbum duplo, a disputa entre os dois, ao fim e ao cabo, permaneceria num generoso empate. Em tempo: essa história do álbum duplo não é opinião minha, não, mas do George Harrison, e está registrada em alto e bom som no documentário Anthology, de 1994. Aliás, falando em Harrison, considero If a Needed Someone a melhor canção composta pelo quiet beatle até então, já prenunciando algumas das obras-primas posteriores – como He Comes the Sun.


Sobre In My Life, a melhor canção do LP em questão e uma das melhores da história da música popular, algumas palavrinhas à parte são necessárias. Tudo nela é tão perfeito que até o arranjo de bateria elaborado pelo Ringo consegue ser genial, com aquele chimbal batido no contratempo quase do início ao fim. A harmonia e a melodia se unem à letra em uma sintonia única e absoluta, fazendo com que o clima de saudosismo que lhe é peculiar se torne universal, ou, em outras palavras, como se a nostalgia de John Lennon pelos anos passados em Liverpool fosse também um pouco nossa, que jamais vivenciamos tal experiência. E olha que ele, à época que a escreveu, tinha apenas 25 anos! E o que dizer daquele solo de piano acelerado (alguns dizem se tratar de um cravo), inserido depois da quarta estrofe e executado por George Martin? A sensação que ele me causa é de natureza epifânica, algo portanto difícil de descrever por meio de palavras. Um êxtase auditivo seria, talvez, a expressão que mais se aproximaria dessa sensação.


Após o fim dos Beatles, em 1970, essa e outras canções assinadas como Lennon/McCartney tornaram-se alvo de controvérsias, em virtude, é claro, da questão da autoria, ou seja, em saber quem havia feito o quê em cada uma delas. Isso se sucedeu devido a dois fatores. O primeiro deles diz respeito ao acordo estabelecido entre os dois front leaders da banda, antes mesmo de a fama chegar, segundo o qual todas as canções que um compusesse, mesmo sem a participação do outro, seria assinada por ambos. O segundo tem a ver com o fato de Lennon e McCartney formarem uma parceria heterodoxa, pois, como os dois escreviam música e letra, não havia no trabalho deles aquela divisão tradicional, no âmbito da canção popular, entre quem faz a música (normalmente primeiro), e quem faz a letra, sobrepondo-a à melodia. Sendo assim, aferir a contribuição de um e de outro nas mais de cem canções assinadas pela dupla não é tarefa das mais simples, cabendo somente a eles a revelação do que é devido a cada um. Como o fim dos Beatles representou também, por um bom tempo, o fim da amizade dos dois, foi dada a largada, a partir de então, para um verdadeiro cabo de guerra entre os ex-parceiros em torno da criação das canções, especialmente as mais belas, como In My Life. Na famosa entrevista concedida à revista Playboy, de 1975, Lennon sugeriu que In My Life seria totalmente dele, com uma pequena ajuda de Paul. Posteriormente, este rebateu declarando que a melodia da canção seria obra sua e não de John.


Independente do processo criativo estabelecido por John Lennon e Paul McCartney na composição de quase todo o cancioneiro dos Beatles, assunto que exigiria uma postagem dedicada somente a ele, foi com Rubber Soul que a dupla começou a pleitear sua entrada no seleto panteão das maiores parcerias musicais do século XX, onde já tinham assento, àquela época, os irmãos George e Ira Gershwin, Tom Jobim e Vinícius de Moraes, Duke Ellington e Billy Strayhorn, além de alguns poucos outros. Apenas mais cinco anos pela frente seriam necessários para que os dois, com a contribuição providencial de George Harrison e Ringo Starr, se tornassem definitivamente 4ever.


por Rodrigo Morais

Coluna: Música


That’s Life: a voz e as cicatrizes de Frank Sinatra

$
0
0
por Homero Nunes


Sinatra foi a voz e a elegância em carne e osso. Nunca usava ternos claros à noite, usava chapéu. Gravatas de seda. Sapatos engraxados, nunca marrons. Recusava-se a vestir smoking aos domingos, era roupa de sexta ou sábado. Bebia invariavelmente seu Jack Daniel’s ao anoitecer, fumava charutos, também cigarros. Jogava poker. Foi casado com quatro mulheres lindas e namorou todas as lindas de sua época. Foi canalha com muitas, loucamente apaixonado por uma só. Tinha relações com poderosos de todos os tipos, inclusive com a máfia. Fez sucesso em tudo que fez. É o grande nome da música americana, mesmo odiando o rock e desdenhando tudo mais. Seus olhos azuis brilharam em mais de 50 filmes, ainda naqueles em preto e branco. Gravou 59 álbuns, o último aos 80 anos. Cerca de 1500 músicas, entre singles, trilhas, participações e discos próprios. Ficou conhecido como The Voice, a voz. Tentou suicídio por duas vezes. Costumava dizer: “não esconda suas cicatrizes, elas fazem de você quem você é”.

As cicatrizes de Sinatra: boca, linha do maxilar, orelha e pescoço. Ele usaria maquiagem a vida toda para tentar disfarçá-las. 
Desmentido, Sinatra escondeu a vida toda suas mais profundas cicatrizes. Aquelas do brutal nascimento no inverno de 1915, 12 de dezembro, quando o médico o arrancou a fórceps do útero da mãe. Menina genovesa de 19 anos, imigrante pobre, com imensa criança que lhe rasgava os canais. Após horas de sofrimento o doutor pegou os instrumentos e o deu como morto ou sacrificado em nome da vida dela. Puxou o menino com tanta violência que lhe rasgou o rosto, a orelha, o pescoço, a linha do maxilar. Jogou-o na pia da cozinha pelado, amassado, desfigurado, coitado. Voltou suas linhas e gazes para a mãe, preocupado com o sangue e os tremores. Foi a avó, aquela rejeitada parteira, que escutou o choro entre os gritos. Jogou logo água gelada nos ferimentos e embrulhou os trapos. Nascia Francis Albert Sinatra, na violência do mundo desde os primeiros minutos da vida.

O bebê Sinatra, fotografado pelo perfil direito de modo a esconder as cicatrizes do lado esquerdo do rosto
Hoboken era o gueto dos maus elementos, italianos e irlandeses, sujos e malvados. Nova Jersey, a prima pobre de Nova York. Pobre, feia e mal falada. Degraus abaixo na relação centro-periferia. Pior ainda para os italianos de sotaque duro, abaixo ainda na estratificação social local, liderada pelo sotaque rústico dos irlandeses. Tão duro que o pai de Sinatra fingia ser irlandês, boxeador, dono de bar, para ascender na escala da mesquinhez, assumindo o nome de Marty O’Brian. Afinal, antes malvado do que sujo carcamano. Alegria de pobre. Logo lhe apareceria o siciliano com todo peso de classe e origem sobre os ombros. Os Sinatras em sangue e história.

Frank Sinatra preso pelo crime de "Sedução", em 1938, acusado de engravidar uma moça. Ela não estava grávida.
Nas décadas seguintes, com o inglês sem sotaque algum, o filho conquistaria o sonho americano, construindo em si a figura mais popular da música americana, multimídia em disco, rádio, cinema e ao vivo. Mas começou a contragosto do pai, envolvendo-se com tipos estranhos em ternos brilhantes, músicos negros, clubes de jazz, álcool e mulheres daquelas. Garimpando espaço em grupinhos, sessões de calouros, canjas em bares. A mãe quase morreu de desgosto, melodramática, ao melhor estilo terra nostra.

Sinatra e Nancy, a primeira mulher, Hoboken, anos 30.
Das docas e atracadouros na beirada do rio, Hudson, os rapazes de Hoboken ficavam admirando Manhattan, a Skyline, a linha de prédios e arranha-céus. O outro mundo do outro lado do rio. Distante, inacessível. Para a maioria eterna miragem, para um deles New York, New York: “Comece a espalhar a notícia, estou partindo hoje... eu quero acordar na cidade que nunca dorme... se eu conseguir lá, consigo em qualquer lugar... rei do lugar, top of the heap... It’s up to you... New York, New York...”

Conseguiu lá e em todo lugar: Nova York, Hollywood, Las Vegas, Tóquio, o Maracanã, o mundo. Há quem diga que por caminhos tortos, contando com a ajuda da máfia e daquelas propostas que não há como recusar, apadrinhado por algum chefão no estilo Mario Puzo ou o Brando de Coppola. Era mesmo muito bem relacionado com os carcamanos, o pai tinha trabalhado no contrabando de gorós durante a lei seca, muitos capangas tinham estudado (ou matado aula) com ele na escola do lado errado do rio e, afinal, ganhava a vida trabalhando na noite nova-iorquina – controlada advinha por quem? Fosse em Vegas, Havana, Miami ou Midtown NY, so sorry, quem dava as cartas eram os mesmos chefões. Sinatra aprendeu cedo a flertar com o poder e tirar proveito disso, pois, se tinha que quebrar o preconceito de ser ítalo-americano, também podia usar a origem a seu favor. Inclusive para aquecer a imagem de bad boy (bad, bad Leroy Brown) que encantava as meninas.


Na verdade, gostava do poder e apanhava por isso, principalmente da imprensa e da política. Apoiou vários candidatos – os Dead Kennedys, Nixon, Reagan etc. – e frequentou comícios e salões da Casa Branca. Recebia mesmo os figurões em sua mansão de Palm Springs. Todos o queriam por perto nas eleições, quase todos o queriam longe depois de eleitos. Mas a política era, com efeito, narcotizante.

A Imprensa o batia – ainda que tenha sido ele o processado por nocautear um repórter – por vários motivos: máfia, política, más influências, confusões e bebedeiras, críticas de discos e filmes e, sobretudo, por sua atribulada vida pessoal e amorosa. Ah, as mulheres de Sinatra! O primeiro casamento foi com o amor da Adolescência, Nancy, a italianinha de New Jersey, mãe dos filhos. Linda a seu modo, horrorosa perto de Ava Gardner (todas eram horrorosas perto dela). O romance com a estrela do cinema começou ainda quando Nancy cuidava das crianças, escancarado pelos paparazzi nos jornais. Quando a matriz cedeu o divórcio, Frank casou-se com Ava dias depois. Meses depois ela o pisou com força, lambendo o asfalto, deixando as marcas dos saltos na alma.

Ava Gardner foi a maior mulher de sua época. 1,68m de imensidão feminina, gigantesca. Independente, inteligente, educada, fina, culta, linda, matadora. Sinatra nunca tinha se aproximado de uma mulher de tal estatura. Ele, o menininho de Jersey, o italianinho do jazz, de apenas 1,72m de charme quase brega e derrubador de fãs adolescentes, trocando olhares com aquela imensidão de mulher. Caiu-lhe de quatro. Ela, do alto de seus andares, divertiu-se com ele aos excessos, entregou-lhe o seu mundo, deixou que experimentasse o cheiro dos mais elevados ares do Olimpo. Ele, galopando degraus acima, ficou embriagado, loucamente apaixonado. Logo ele, machista entre a Sicília e Gênova, possessivo e mimado, aos pés de uma mulher... e que mulher!

Mas o casamento dos deuses desandou. Ela era independente demais para cuidar de homem, grande demais para se conformar à sua sombra. Em viagens e filmagens, o deixou lambendo dedos, botas, asfalto, para trás. Quando Sinatra acordou, um destemido toureiro já balançava a capa diante do touro em Madrid. Ava pediu o divórcio e foi brilhar em outras galáxias. Frank afundou-se na lama, deitando sarjetas e desafiando a morte por sua própria conta.

Fracasso nunca vem só, coincidiu com baixa nas vendas, péssimos shows, escassez de convites, fuga dos amigos, depressão, esquecimento. Resiliente, quando escapou do poço e o fez do jeito dele. “I did it my way”. Tocou sofrimento nas interpretações, romantismo nas músicas. Sabia que ninguém que não tivesse sofrido tanto por amor poderia cantar como ele e, assim, já eliminava boa parte da concorrência água com açúcar. Voltou com a força de quem resistiu à tempestade, envergado, mas não quebrado. Por fim, ainda ganhou um Oscar.

Ernest Bornaigne, Burt Lancaster e Frank Sinatra em "Form Here to Eternity", 1953
Dizem que a Máfia ajudou Sinatra a conseguir o papel no grande filme de sua carreira, A Um Passo da Eternidade, de 1953. Ele, o diretor Fred Zinnemann e os produtores sempre negaram isso. Mas quem ousaria ficar com o ônus da prova? Não importa mesmo. Vale o Oscar que Sinatra ganhou pelo papel de um fracassado coadjuvante bebum na guerra. Boa praça que ele só. Fracassado como estivera nos últimos tempos. Da sarjeta, Frank Sinatra voltava agora como um artista maior ainda. Ator monstro, “a um passo da eternidade”.

Lauren Bacall
Recuperado do choro e do asfalto, da desilusão do amor, a vítima seguinte foi a viúva de Humphrey Bogart, amigo íntimo, ninguém menos que Lauren Bacall. Lindíssima, espetacular Lauren Bacall. Não demoraram os abutres a dizer que o romance teria começado antes da morte de Bogart ou antes de o defunto esfriar. Muita pressão, câmeras e flashes em todo restaurante, bar, hotel, aeroporto ou espelunca que pisavam. Não há amor que resista ao mau humor que tal exposição imprime. Quebraram-se os corações e fizeram andar a fila. Além do perfume e daquele fio de cabelo no paletó, Lauren Bacall deixou com Frank e os amigos a alcunha da gang: um pacote de ratos, o Rat Pack.

Dean Martin, Jammy Davis Jr. e Frank Sinatra
Lauren Bacall teria colocado o apelido na turminha do seu marido (Bogart) devido à formação de quadrilha que comumente manchava a mobília da sala com copos de uísque. Desde então, alguns entraram e saíram, mulheres também, até que cinco deles fixaram a alcunha em si: Sinatra, Dean Martin, Sammy Davis Jr., Joey Bishop e Peter Lawford. Começaram compartilhando o estilo de vida que o dinheiro farto do showbiz podia pagar: festas, bebedeiras, mulheres lindas, carrões, fama e ternos e cabelos bem cortados; contudo, foi quando reuniram os talentos nos placos que o Rat Pack embriagou o público, também o público. Jack Daniel’s no copo, cigarro aceso nos dedos, muito humor, esquetes, música de qualidade e uma elegância politicamente incorreta – entre o machismo moderado e o charme de conquistador quase barato – derretiam a plateia em entretenimento e carisma. Las Vegas era o habitat daquele pacote de ratos, mas também Hollywood os produziu, incluindo Ocean’s Eleven (Onze Homens e Um Segredo, 1960), que nem precisa dizer que compensa. Get a drink, sit back and enjoy the show!

Ocean's Eleven, 1960
O líder dos ratos, Sinatra, orgulhava-se ainda de impor, na Las Vegas branca e protestante da época, racista e segregadora, a presença de músicos negros na orquestra e, mais longe, a figura de um negro, Sammy Davis Jr., como membro oficial do Rat Pack. Diz a lenda que um dia um dono de cassino reclamou e Sinatra ameaçou abandonar Vegas caso o infeliz repetisse o despautério. Claro que não repetiu. Mas Sinatra incorporaria nos anos seguintes, pelos amigos que fez na estrada e pela admiração pela música negra, o discurso antirracismo e a crítica à desigualdade de direitos dos artistas negros nos Estados Unidos.

Sinatra e Mia Farrow
Quando fez 50 anos, em festa e muito uísque, Sinatra casou-se com Mia Farrow, então com 21 anos de idade, muito mais jovem que sua própria filha. Mais uma vez foi chamado de imoral pela imprensa marrom e não teve sossego para viver um amor do modo que a idade pedia. Durou dois aniversários. 10 anos depois Sinatra encontrou enfim a mulher que o acalmou, Barbara Marx. A loira, alta, linda, modelo, apenas 12 anos mais jovem, que ficaria ao lado dele até a morte, em 1998.

Barbara Marx e Sinatra
Sinatra tinha tentado a aposentadoria, cansado da guerra, nos anos 70. Despediu-se, fez show de nostalgia, declarações emocionadas e muita gente chorou e lamentou, claro. Mas não deu certo. Voltou com toda a carga até o final da vida. Em 1980, levou mais de 170 mil pessoas ao Maracanã, num show histórico, o maior de sua carreira. Tinha que ser no Brasil mesmo.

O coração lhe cobrou as emoções aos 82 anos, num ataque fulminante. Deixou órfãos o rádio, o cinema, a música popular, todos nós. Aquele copo de boca larga e fundo grosso, o gelo flutuando no bourbon, o cigarro entre os dedos. Terno escuro, gravata frouxa, desabotoado colarinho. Chapéu cavangnah. Magro, grandes olhos azuis, cicatrizes no rosto. Delicadamente incorreto, agressivamente sedutor. Sinatra herdou a silhueta da família, as marcas da vida dura e o estilo dos maus elementos de ascendência italiana. O charme, o talento, o gênio de Frank Sinatra, a voz.


por Homero Nunes

Coluna: Música


Ismael Nery, no infortúnio da vida e na redenção da arte

$
0
0
por Juliano Mignacca

Ismael Nery, Nós, 1926
Visitar o Museu de Arte Contemporânea de São Paulo (MAC-SP) já vale a pena só para conhecer o edifício. Projetado por Oscar Niemayer (1907-2012) nos anos de 1950, o antigo prédio, que antes sediava o Detran-SP, foi transformado em museu em 2013. O saguão, com seus pilotis em forma de “V”, certamente não passará despercebido. A arquitetura por si já é um convite imperdível, e o acervo desse museu é algo de deixar o queixo caído.


Se o visitante tiver fôlego para percorrer os sete andares, vai se deparar com obras de Modigliani, Picasso, Kandinsky, Anita Malfatti, Alfredo Volpi, entre outras das 10 mil que o acervo do museu contém. Por último, poderá fazer uma pausa no topo do prédio, de onde se tem uma vista panorâmica da cidade de São Paulo e do Parque do Ibirapuera, localizado ao lado.


Numa das primeiras vezes que fui ao novo museu, uma obra que me entorpeceu por alguns instantes foi Figura (1927), de Ismael Nery (1900-1934). Uma mulher grávida, cujos braços másculos se assemelham ao de um homem, dois rostos, talvez dois sentimentos que se conectam àquela gravidez. Híbrido pelas formas cubistas e cores expressionistas. Uma imagem que evoca o surreal. Ele expõe, numa única obra, as três tendências formais que permearam sua vida artística. Fiquei intrigado porque, além de conhecer muito pouco sobre esse artista até então, percebi que aquele quadro era o único dele existente no MAC.

Ismael Nery, Figura, 1927
Mais recentemente, para meu deleite, a galeria Almeida e Dale me brindou com uma retrospectiva desse ilustre artista plástico paraense. Algo que não acontecia há 15 anos, devido ao fato de suas (poucas) obras estarem, em sua maioria, nas mãos de colecionadores.

A passagem terrestre de Ismael Nery daria um conto trágico. Seu pai morreu aos 33 anos, logo depois o irmão, a mãe caiu em insanidade e, por último, sua própria morte, também aos 33 anos, vítima de tuberculose. Mesmo com tão pouco tempo de vida, Nery teve múltiplas facetas artísticas. Foi poeta, arquiteto, cenógrafo e filósofo.

Ismael Nery, Autorretrato, 1930
Apesar de ter sido contemporâneo dos artistas modernistas brasileiros na entrada do século passado, sua arte visual era diferente da de seus pares. Não tinha interesse por temáticas nacionalistas. Sua obra gira em torno de certas dualidades de cunho filosófico como o eu e o outro, o corpo e o espírito, o bem e o mal, o masculino e o feminino. O outro é normalmente representado pela sua mulher, a poetisa Adalgiza Ferreira, ou seu grande amigo, o poeta Murilo Mendes. Seus quadros conduzem a uma questão paradoxal, como alguém que se olha no espelho e pergunta: “Quem sou eu?”

Murilo Mendes, diante de Composição Surrealista, de Ismael Nery, 1929
Alguns de seus trabalhos remetem a Amadeo Modigliani pelas formas alongadas do pescoço e das mãos. Também não há como deixar de associá-los à obra de Frida Kahlo. Os dois souberam externar com maestria suas tragédias pessoais. Outro detalhe curioso é sua assinatura: uma logomarca que poderia servir de inspiração para agências de publicidade.

Ismael Nery, Composição surrealista, 1929
Mesmo com tantos predicados, Nery morreu sem nunca ter vendido um quadro em vida. Sua obra veio à tona para o grande público somente em 1965, na 8º Bienal de São Paulo, ao ser exposta em uma sala especial nomeada Surrealismo e Arte Fantástica. Discorrer sobre esse grande artista é divulgar aquilo que poucos sabem, mas cuja importância para a história da arte visual brasileira é imensa.

Ismael Nery, O Encontro, 1928


"Em poucos anos percorrestes os séculos
Que medeiam entre o Gênese e o Apocalipse.
O germe da poesia, essencial ao teu ser,
Se prolongará através das gerações.
Eras sábio, vidente, harmonioso, forte:
Mas atrás de ti, que visavas o eterno,
Se erguiam o tempo e as muralhas da China.
Morres lúcido aos trinta e três anos,
Quando se fecha uma idade e se abre outra.
Morres porque nada mais tens que aprender."

Trecho do poema “Ismal Nery”, de Murilo Mendes
MENDES, Murilo. Tempo e eternidade. 1935




por Juliano Mignacca

Coluna: Arte


Lennon e as joias da coroa

$
0
0

Em terninhos comportados e cabelinhos corridos, os Beatles apresentavam o Rock n' Roll aos nobres e bacanas em um evento beneficente estrelado pela rainha mãe -- aquela que morreu aos 246 anos -- Elizabeth I, em Londres, em 1963. A família real esperava uma maratona de apresentações que culminariam em Marlene Dietrich e Maurice Chevalier. Dentre a música de câmara e os sucessos do rádio, cabia aos garotos de Liverpool tocar 3 músicas divertidas para elevar o astral da noite. Mas antes da última, Twist and Shout, John Lennon mostrou também a que veio o rock. Espirituoso e sorridente disse ao microfone: "Para o nosso último número, eu gostaria de pedir sua ajuda. As pessoas nos assentos mais baratos poderiam bater palmas... e o restante de vocês podem apenas chacoalhar as jóias”. (vídeo abaixo)

Era ousadia pura, atitude roqueira fazendo piada com a estrutura social, os filhos da classe operária alfinetando a ostentação entre os nobres e abastados ostentadores. Anos mais tarde, os Beatles se curvariam novamente à rainha ao serem condecorados com a medalha da Ordem do Império, mas não antes, segundo Lennon, de fumar um baseado no banheiro do Palácio de Buckingham. 

Foi ele mesmo, o Lennon, que declarou isso em entrevista. Anos mais tarde, George Harrison desmentiu, disse que foi piada, Ringo disse não se lembrar de qual cigarro era aquele e McCartney disse que foi só tabaco. De qualquer forma, a história entrou para o anedotário dos Beatles. Se aconteceu ou não, a declaração em si já abalou algumas estruturas, chocou os caretas e, mais uma vez, Lennon fez piada com a deferência à família real e o status quo. Na verdade, a marijuana pouco importa. O interessante mesmo era o Lennon e suas declarações, peladão na cama pela paz. Long live rock n' roll!

The Beatles
Twist and Shout
Prince of Wales Theatre
04 de novembro de 1963


Bethânia, Opinião e o Carcará

$
0
0
por Rodrigo Morais


Maria Bethânia cantando Carcará. Um momento antológico do musical Opinião, captado pelas lentes do grande cineasta carioca Paulo César Sarraceni, em 1965. Produzido pelo Grupo Opinião e estreado em 11 de dezembro de 1964, somente oito meses após o golpe civil-militar que depôs João Goulart, o espetáculo acabou se tornando, por diversos motivos, um poderoso elemento aglutinador das esquerdas reformistas contra o desânimo geral que se abateu sobre elas após a imposição daquele regime de exceção. Segundo Roberto Schwarz, em um ensaio chamado Notas Sobre Cultura e Política 1964-1969, ele teria sido um dos responsáveis por criar uma cultura hegemônica de esquerda no Brasil mesmo sob a égide de um governo rigorosamente de direita. Essa hegemonia, conforme o título do trabalho revela, duraria até 1969, quando o AI-5, apertando o garrote de vez, finalmente conseguiu estrangulá-la.


Formado, em sua maioria, por artistas ligados ao PCB, organização à época adepta da tese conhecida como “frente única”, segundo a qual, muito sumariamente, a superação das adversidades (políticas e econômicas) só se efetivaria se todos os setores progressistas da sociedade brasileira se unissem, sem distinção de classe social, a obra inaugural do Grupo Opinião poderia ser caracterizada como reformista por excelência. Isso do ponto de vista político, claro. Processado artisticamente, tal pensamento se materializou, por exemplo, na escolha do elenco do espetáculo, formado por João do Vale, Zé Kéti e Nara Leão, um representando, respectivamente, o pobre sertanejo, o outro o pobre das grandes cidades e a terceira a classe média urbana. Maria Bethânia, que aqui (vídeo acima) se vê com 18 anos cantando a siderada canção Carcará, de João do Vale e José Cândido, entrou posteriormente no lugar de Nara Leão, confundindo um pouquinho a questão das classes mas acrescentando, talvez, maior força expressiva à interpretação antes consagrada por Nara (vídeo abaixo), que, diga-se de passagem, é também de altíssima qualidade.  


Roteirizado por Oduvaldo Vianna Filho, Armando Costa e Paulo Pontes e dirigido por Augusto Boal, Opinião intercalava músicas de gêneros variados com relatos autobiográficos dos três cantores, enunciando, por meio de alusões de estratégico duplo sentido, o repúdio ao quadro político vigente. No vídeo aqui reproduzido, atente-se à imagem em close up, logo no início, de Oduvaldo Vianna Filho, o Vianinha, um dos maiores dramaturgos da história do teatro brasileiro, muito precocemente desaparecido (apenas 38 anos de idade). No Rio de Janeiro, Opinião ficou em cartaz no Teatro de Arena do Super Shopping Center, localizado em Copacabana. Ao se transferir para São Paulo, em abril de 1965, cumpriu temporada no Teatro Ruth Escobar, dando início, até certo ponto, ao histórico ciclo dos musicais do Teatro de Arena de São Paulo, dos quais fizeram parte os sempre lembrados Arena Conta Zumbi (1965) e Arena Conta Tiradentes (1967), todos com direção de Augusto Boal.

por Rodrigo Morais

Coluna: Música


Os 400 anos da morte de Shakespeare

$
0
0
por Rodrigo Morais

“Ninguém faz nada em arte se lhe falta uma dimensão de mau gosto de Vicente Celestino. Todos nós somos um pouco o autor de ‘O Ébrio’. Shakespeare viveu grandes momentos de Vicente Celestino. Ricardo III tem coisas de ‘Coração Materno’ e ‘Ontem eu rasquei o teu retrato’.”
Nelson Rodrigues


Há 400 anos falecia William Shakespeare, ele mesmo, Shakespeare, o bardo, o gênio atemporal, o poeta e dramaturgo considerado o primus inter pares da literatura universal. Aquele aclamado em prosa e verso como o maior escritor de todos os tempos. Aquele a quem Victor Hugo reputava como o maior criador depois de Deus. Aquele a quem Harold Bloom, crítico literário norte-americano ainda em atividade, considera não só o centro do cânone ocidental, mas o próprio inventor da ideia que hoje se tem a respeito do ser humano. Em suma, o mais indispensável e incontornável dos autores, aquele a partir do qual todos os outros deveriam ser julgados – mesmo os que vieram antes dele.

Ainda que tido e havido como o suprassumo da sofisticação artística, o protótipo daquilo que se poderia qualificar de “alta cultura”, deve-se ressaltar, contudo, que boa parte da obra de Shakespeare foi construída sob inspiração da chamada cultura popular. Seu teatro, por mais que hoje se afigure como “acadêmico” e “clássico”, nasceu de um sujeito que não teve uma educação esmerada, não era nobre e não escrevia para a nobreza, pelo menos não especificamente. Se existe um traço marcante do teatro elisabetano, e também do “século de ouro” espanhol, é seu caráter popular, seja na absorção de elementos peculiares às camadas mais baixas da população, economicamente falando, seja na escrita voltada para a diversão dessas mesmas camadas.

Cordelia na Corte do Rei Lear, por John Gilbert, 1873 - Towneley Hall, Burnley, UK
Exemplos dessa assimilação empreendida por Shakespeare do folclore de sua terra natal pululam em boa parte das 39 peças que deixou. Alguns, de acordo Aimara da Cunha Resende, professora aposentada da UFMG, em um texto chamado Entre Nobres e Aldeões, podem ser encontrados em obras insuspeitadas, como O Rei Lear e Romeu e Julieta, ambas normalmente incluídas na categoria “tragédia”, a quintessência do gênero erudito em termos dramatúrgicos. Na primeira, por intermédio da personagem de Edgar, pode-se antever a figura folk de Tom o’Bedlam, um tipo marginal e lunático muito comum no imaginário da Inglaterra medieval. Na segunda, por intermédio da personagem da ama, configurada à maneira de uma Mother Bunch, figura típica da literatura popular inglesa, as chamadas “histórias agradáveis”. Essas histórias, impressas em livrinhos que nos tempos de Shakespeare eram vendidos em feiras, faziam a delícia das jovens casadoiras, que no tipo excêntrico de Mother Bunch descobriam conselhos e lições sexuais. Isso sem falar de peças como Sonhos de uma Noite de Verão e A Tempestade, nas quais as mais caras tradições pagãs de origem normanda e saxônica extravasam quaisquer limites. E o que dizer de Otelo, tragédia cujas conexões com a commedia dell’arte já foram apontadas por críticos e comentadores da dramaturgia shakespeariana, inclusive surpreendendo em Iago sinais arlequinescos?

Otelo e Desdêmona, por Muñoz Degrain, 1881 - Museu do Chiado, Lisboa
Em que pese a obra de Shakespeare ter sido, ao longo dos anos, “cooptada” pelas classes mais favorecidas, servindo como emblema de distinção intelectual e social, a mesma visão classista que hoje a venera, um dia já se voltou contra ela. Não exatamente contra a obra, vale esclarecer, mas contra seu autor, no tocante às suspeitas, levantadas desde o século XIX, quanto à autoria das peças e dos poemas shakespearianos. Salvo engano, tudo começou quando, em 1856, uma norte-americana chamada Delia Bacon, que se dizia descendente do filósofo inglês Francis Bacon (1561-1626), atribuiu a ele a composição desses textos. A partir de então, já apareceram mais de cinquenta candidatos ao título de poeta maior do teatro ocidental. A alegação em favor de cada um deles é quase sempre a mesma: Shakespeare teria sido apenas um factótum, isto é, alguém que emprestava seu nome a outrem que não desejava aparecer, provavelmente por motivos políticos. Por detrás dessas desconfianças, que nenhum estudioso de mérito jamais levou a sério, se verificaria um indefectível preconceito de classe, que poderia ser resumido pela seguinte pergunta: como um sujeito que jamais frequentou uma universidade, um simples “homem de teatro” que, ainda por cima, era plebeu da cabeça aos pés, teria conseguido produzir obras de tamanha envergadura estética?


Deixando de lado tais polêmicas, importa ao leitor do Isso Compensa saber que, em virtude dos 450 anos do nascimento de William Shakespeare, comemorados em 2014, iniciou-se um dos mais ousados empreendimentos do teatro brasileiro contemporâneo, intitulado “SHAKESPEARE – Projeto 39”. Promovido pelos produtores Erike Busoni e Alexandre Brazil, como o próprio nome revela, seu intento é levar para os palcos da cidade de São Paulo, ao longo de alguns anos, todas as obras teatrais do autor. O espetáculo inaugural do projeto, Ricardo III, de 2013, dirigido por Marcelo Lazzaratto, destacou-se pela atuação de Chico Carvalho no papel principal, que lhe rendeu o Prêmio Shell daquele ano de melhor ator. Em 2014, mais uma produção veio à tona: Os Dois Cavaleiros de Verona, montagem dirigida por Kleber Montanheiro inspirada na commedia dell’arte e outros gêneros de teatro popular. Para os 400 anos de falecimento estão programados, além de um ciclo de conversas com artistas e pesquisadores, a encenação de mais um texto (Troilo e Créssida), prevista para estrear ainda no primeiro semestre deste ano, com direção de Bete Dorgam.

Hamlet e Horácio no Cemitério, Eugène Delacroix, 1839 - Louvre, Paris

Tais considerações acerca de algumas montagens recentes de Shakespeare são importantes no intuito de levantar a seguinte questão: por mais que se deva ler e reler suas peças sempre, uma fruição mais completa delas só se dará, de fato, pela via da encenação, uma vez que a dramaturgia é e sempre será um gênero literário cindido, “abortado”, que só adquire sentido pleno mesmo no palco. Isso, é claro, tomando-se como parâmetro uma “boa encenação”, pois um Shakespeare mal montado haverá sempre de parecer, por incrível que pareça, uma piada de mau gosto. De qualquer forma, quatro séculos após a morte do dramaturgo, a simples existência de um projeto como o acima descrito, além de outros mais ou menos assemelhados, encampados num país americano cujo poder público não dá a mínima atenção à área cultural e que, ainda por cima, não fala inglês, é algo sem dúvida digno de nota. Iniciativas assim – que embora limitadas a um universo restrito, não deixam de ser significativas – só corroboram as palavras de outro grande dramaturgo elisabetano, Ben Johnson, autor que prefaciou a primeira coletânea das peças de Shakespeare (1623), onde se lê: “Ele não pertencia ao seu tempo, mas a todos os tempos.”

William Shakespeare
*Stratford-upon-Avon, 23 de abril de 1564





Cervantes, o cavaleiro andante e a quixotesca vida do escritor mais lido em 400 anos

$
0
0
por Homero Nunes


Trinta ou mais desaforados gigantes, de braços compridos, covardes e vis criaturas, que lhe sentiram o frio da espada e a aventura da leitura. Grandes moinhos de vento da história da literatura tentaram tirar de Cervantes o honorável título de escritor mais publicado e lido de todos os tempos. Muitas controvérsias, listas refeitas, contas, edições, disponibilidade em bibliotecas, adaptações, teses e dissertações tentam até hoje desbancar “o engenhoso fidalgo de La Mancha” da grande história. Mas tirando livros religiosos e um ou outro Conde e filósofo, ninguém seriamente é capaz de lhe infligir algum ferimento mais grave. Miguel de Cervantes, um homem do povo, pobre e fracassado, é o mais publicado e lido escritor em 400 anos.


O episódio dos moinhos de vento, os gigantes do devaneio de Dom Quixote, ocupou apenas 3 ou 4 páginas, de um só pequeno capítulo, dentre os 126 divididos nos dois volumes publicados entre 1605 e 1615, em cerca de 700 páginas. Um fragmento que se tornou a própria metáfora da loucura, o resumo da ópera de Dom Quixote, a prova da genialidade de Miguel de Cervantes. Nele, um louco cavaleiro investe sua lança contra as imensas pás rodantes de um moinho, tendo como testemunha o atônito e fiel escudeiro Sancho Pança que tentara em vão dissuadi-lo. Uma toada de imenso humor que partiu a lança em pedaços e jogou longe o senhor, pasto afora, quebrando-lhe o ímpeto em dolorosos amassados na armadura. Depois disso seguiu destino, enfrentando ilusões pelo amor de Dulcineia e lutando a boa guerra contra as injustiças do mundo. Doido de jogar pedra, o gênio de Cervantes.


Miguel de Cervantes Saavedra nasceu em Alcalá de Henares, um pueblo castelhano, a 29 de setembro de 1547. Filho de barbeiro errante e mulher do campo, foi criado entre seis irmãos, correndo a Espanha que era dona do mundo no século XVI. Enquanto o pai fazia barba, cabelo e bigodes, também algumas sangrias (barbeiro-cirurgião), o menino ia solto na educação ou na falta dela. Malcriado e rebelde, só foi disciplinado pelos jesuítas na adolescência, recebendo leitura, gramática e o gosto pelas letras. Mas era mundano demais para jesuíta, queria apenas cair no trecho, seguir viagem, andante.

Pablo Picasso
Viveu na Itália no fim do Renascimento, já um tanto barroca, após Dante, Maquiavel, Da Vinci e Michelangelo. Depois foi lutar nos mares da Grécia, em nome da Santa Liga Cristã, contra os ímpios e hereges. Ferido e maltratado na guerra, perdeu as funções da mão esquerda e ganhou apelido pejorativo de “manco izquierdo” ou “o manco de Lepanto”, local da batalha onde foi aleijado. Ficou fora de prumo um ou dois verões, tentou acalmar, mas voltou aos mares no norte da África em nova expedição militar. Lá nas águas quentes do Mediterrâneo teve o navio capturado por piratas otomanos, feito escravo e jogado nas masmorras de Argel. Penou por anos até ser pago o resgate absurdo exigido, comprometendo as finanças da família toda e dos amigos. Voltou torcido e falido à Castilla, pagando o preço de ter custado a miséria aos seus.

Salvador Dalí
Quando sem esperança e sem dinheiro, sem servir para nada mais, foi servir de soldado raso, mais uma vez, nas carreiras do Rei. Mas não tinha mais idade nem paciência para suportar a espera e a espada embainhada. Pediu baixa e, em 1584, foi lutar no casamento, contra uma bela moça 20 anos mais jovem, iludida pelo semblante do “cavaleiro da triste figura”. Também nestes tempos tentava escrever, inspirado pelo teatro e intermédios. Nada que rendesse publicação e direitos, o que dificultava ainda mais aquele sujeito difícil, de dinheiro escasso, aventureiro sem eira, aquela triste figura. Deixou solitária a mulher no matrimônio e, claro, levou aquele imenso par de chifres de tourada quando ela o deixou por outro mais jovem, com mais dinheiro. Triste Cervantes.

Honoré Daumier
Jogado estava, então, na velha estrada, aberta e seca, empoeirada, a caminho de outro lugar, longe dali, onde pudesse ser desconhecido. Em Madrid, trabalhando para pagar cama e prato, sobrou algum tempo para concluir seu primeiro livro, publicado em 1585: Galatéia. Era a novela de uma moça do campo, de ímpeto livre, escorregando entre os galanteios de dois pretendentes. Capa e brochura, nada de moedas no embornal.

Alexandre Gabriel Decamps
Continuou escrevendo peças de teatro, alguma poesia, prosas, mas nada ainda de moedas. Até que foi trabalhar naquilo que considerava tarefa ingrata, um emprego que ninguém queria, cobrador de impostos. Um homem tão ruim com as próprias finanças, tentou justamente o cargo de cuidador do erário, parte pequena dele, mas suficiente para trancafiá-lo por suspeita de algum desvio. Jurando inocência, amargou alguns meses na prisão em Sevilla, quando à luz da solidão e do tédio vislumbrou uma novela de cavalaria, as aventuras de Dom Quixote de La Mancha.

Candido Portinari
Aos 57 anos, em 1605, conseguiu juntar o que lhe restava de força e dignidade e publicou O Engenhoso Fidalgo Dom Quixote de La Mancha. O livro, em galope de Rocinante, correu Castilla, Andaluzia, Aragão, Catalunha, cruzou os Pirineus e os mares. Traduzido em português, francês, italiano e inglês, alcançou dezenas de edições nos anos seguintes, vendeu horrores, até culminar na segunda parte do Engenhoso Cavaleiro Dom Quixote de La Mancha, publicada em 1615. Cervantes morreu no ano seguinte, no dia 22 de abril de 1616, ainda pobre, velho, ranzinza e doente do fígado. Enterrado sem honras nem lápide, num convento em Madrid.

Gustave Doré
Nos 10 anos que separaram as publicações das partes, Cervantes ainda pôde desfrutar de alguma benesse advinda do sucesso, ganhou algum dinheiro, bebeu vinho e comeu de tudo. Muito pouco ou quase nada se comparado ao enorme sucesso editorial que a obra alcançaria nos séculos, quatro deles, seguintes. Sustentou-lhe a velhice, é certo, mas não o tirou da pobreza nem da triste figura.

Gustave Doré
Desde 2011, uma busca pelos restos mortais de Cervantes cavou buracos no Convento das Trinitárias em Madrid, construção centenária reconstruída por cima dos próprios escombros por vezes. Em 2015 veio a confirmação da ossada encontrada de Cervantes, sem DNA nem nada, mas com a convicção de um louco cavaleiro andante enfrentando moinhos de vento.

por Homero Nunes



Ella só dança samba: Ella Fitzgerald e um samba de gringo

$
0
0
por Rodrigo Morais


Ella Fitzgerald, uma das três maiores divas da história do jazz, cantando Só Danço Samba, de Tom e Vinícius. Escrita em 1962 e lançada no mesmo ano em um show histórico chamado O Encontro, que contava com as presenças, além dos autores, de João Gilberto e do conjunto Os Cariocas, Só Danço Samba parece ser um caso de canção destinada a se consagrar em gravações ao vivo. Lady Ella a gravou duas vezes ao vivo. A primeira vez foi em 1966, com a orquestra de Duke Ellington, no show The Stockholm Concert. A segunda, também em 1966, num concerto realizado em Côte D’Azur (França), acompanhada pelo trio de Jimmy Jones e incluída no álbum Ella and Duke at the Cote D'Azur


Por mais estranho que possa parecer, aos ouvidos de um brasileiro, ouvir Ella Fitzgerald em sua comovedora tentativa de cantar alguns versinhos em português, algo de resto normal, em virtude, claro, do acentuado sotaque, o que mais causa estranhamento neste vídeo (abaixo) é na verdade o ritmo conferido à canção, ou seja, a batida da bateria. É impressionante a dificuldade que os bateristas de jazz, músicos quase sempre virtuosísticos, tinham (ou têm) para tocar samba, seja em que variante for – como, por exemplo, a bossa nova. O resultado é quase sempre uma mistura amorfa que não é nem jazz, nem samba, mas algo que os músicos brasileiros costumam designar, pejorativamente, de “samba de gringo”. 


Não à toa, quando Tom Jobim aceitou o famoso convite de Frank Sinatra para gravar o primeiro dos dois álbuns que eles fizeram juntos, sua única exigência foi a presença, na banda, de um baterista brasileiro. Com as baquetas nas mãos de Dom Um Romão, um dos grandes bateras da bossa nova e do samba-jazz, Tom sabia que poderia dormir tranquilo: em seu memorável encontro com “the voice”, o sotaque estrangeiro ficaria reservado a quem de direito.


Também compensa:
 

Coluna: Música



Nietzsche e o cavalo de Turim

$
0
0
por Homero Nunes

Imagem do filme "O Cavalo de Turin", de Béla Tarr, 2011
A inteligência foi uma maldição para Nietzsche. Rejeitado desde a infância, cercado de beatas melancólicas, jovem taciturno e solitário, adulto fracassado, doente, incompreendido. Atormentado, pensou coisas “além do bem e do mal”, colocou a inteligência no papel, escreveu muito, aforismos, poemas filosóficos de causar aneurismas, publicou em vida, mas não foi lido. Ninguém entendeu, ninguém quis. Como seu Zaratustra isolou-se em si, na arrogância de seu super, além do homem. Esmagado por enxaquecas terríveis, perdendo a visão e a sanidade, pendulou de um lugar a outro procurando a paz no mundo, em diferentes paisagens bucólicas, sabendo que a guerra era interna. Enfim, triste, abandonado por todos e por si mesmo, encontrou-se na Itália, hóspede de um simples quarto com catre e cadeira, banheiro coletivo no corredor. Um dia, os pensamentos fincando como alfinetes, vislumbres como cortes de navalha, escutou um cavalo sendo açoitado na rua. Brados enraivecidos contra o indefeso animal, o chicote estalando, sangue e relinchos para todo lado. Os transeuntes ocupados sem perceber a cena, cada um preso em suas mesquinhas responsabilidades. Nietzsche rompeu à rua, em desespero atroz, rangendo os dentes na direção do açoite, rosnando blasfêmias contra o algoz. Era o fim do maior filósofo desde Kant: abraçado ao cavalo, chorando, chorando, chorando seu desespero. Enfim, desmaiou para nunca mais. Quando acordou era um nada, um catatônico Nietzsche sem frases inteligíveis, olhar parado, babando.

Morreu uma década depois, sob cuidados da irmã, Elizabeth Förster-Nietzsche, aquela que não lhe compartilhou da inteligência e que, por falta dela, serviu para a terrível interpretação de Nietzsche pelo Nazismo.


Sobre o filme O Cavalo de Turin (Béla Tarr, 2011), ainda que o título seja uma referência direta ao colapso de Nietzsche, não conta a história do filósofo. Apenas a epígrafe, em tela preta no início, lembra o episódio. De resto, interpretações, aproximações e entrelinhas filosóficas ficam por conta das viagens de cada um. Mas compensa. 

Busto de Nietzsche, por Josef Thorak, 1944

*texto por Homero Nunes, originalmente publicado como parte do post "Na solidão, triste e desiludido...", em maio de 2014, aqui no Isso Compensa.


Sartre No Brasil

$
0
0
por Rodrigo Morais

Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir em Copacabana, 1960
Em 2 de setembro de 1960, Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir desembarcavam no aeroporto de Congonhas, em São Paulo, na temporada que passaram no Brasil. A visita, que durou dois meses e meio e foi quase toda ciceroneada por Jorge Amado, o autor do convite ao casal, sem dúvida deu o que falar, repercutindo bastante na imprensa da época. Posteriormente, tornou-se objeto de pesquisas acadêmicas, dando origem a livros copiosos. Nelson Rodrigues, em uma crônica publicada alguns anos depois da passagem do filósofo existencialista por aqui, disse que ele teve, entre nós, “um sucesso de Frank Sinatra”.

Sartre em Ouro Preto, foto por Zélia Gattai, 1960
Protótipo do intelectual “engagé”, não surpreende que a primeira pergunta dirigida a Sartre na entrevista do desembarque (vídeo abaixo) tenha sido sobre Cuba e sua revolução, então uma flor em botão. É bom lembrar que Sartre e Beauvoir estiveram na ilha caribenha poucos meses antes de chegarem ao Brasil, onde desfrutaram da hospitalidade de Fidel Castro e se entusiasmaram com os rumos iniciais tomados pelo seu governo. Conforme se pode ver no filme, captado em 16 mm, a claque posicionada em torno do casal era quase toda formada de simpatizantes da revolução cubana. Anos mais tarde, em 1971, por conta da prisão do poeta Herberto Padilla, Sartre e Beauvoir romperiam com o regime castrista.



Logo atrás de Jean-Paul Sartre, tal qual um verdadeiro papagaio de pirata, está o encenador e dramaturgo José Celso Martinez Corrêa. O motivo de sua presença ali, para além da admiração pelo intelectual francês, era mais pragmático: queria ele a autorização para realizar uma adaptação teatral de “A Engrenagem”, roteiro cinematográfico escrito por Sartre cujo tema era a inutilidade dos movimentos revolucionários que não visavam a libertação do imperialismo estrangeiro. Concedida a autorização, Zé Celso e Augusto Boal realizaram às pressas a adaptação, que estreou em outubro de 1960 – quando Sartre e Beauvoir ainda estavam no Brasil – e se tornou o último espetáculo da fase amadora do Teatro Oficina.

Sarte, Zé Celso e Simone de Beauvoir


Iberê Camargo, carreteis abstratos e os fantasmas do fim do dia

$
0
0
por Juliano Mignacca


O final de tarde é de outono. No horizonte sob o rio Guaíba em Porto Alegre, uma explosão de cores. Tons quentes cortinam o crepúsculo que insiste em penetrar pelo céu da cidade. Penso em William Turner e Claude Monet. Avanço um pouco mais e aqui estou em frente à Fundação Iberê Camargo. Desvio meus pensamentos para esse ilustre pintor gaúcho. Subo as rampas labirínticas desse museu projetado pelo arquiteto português Álvaro Siza Vieira. No terceiro andar, a exposição Diálogos no Tempo de Iberê Camargo (1914-1994). Esqueço a paisagem lá fora. Do lado de dentro, na entrada da sala, alguns estudos para a elaboração da tela Fantasmagoria IV, de 1987. Rabiscos e manchas coloridas que geraram o embrião do quadro abaixo. 

Fantasmagoria IV, 1987
A fase tardia da pintura de Iberê evoca o sombrio. Seres humanos disformes num fundo chapado de tintas. Temperamento dramático? Alma perturbada pelo desfecho trágico em 1980? Após entrar na briga de um casal desconhecido nas ruas do Rio de Janeiro, Iberê sacou seu revolver e matou a tiros o homem. Foi absolvido por legítima defesa.  Tragédias à parte, a paleta de Iberê já vinha impregnada de tensão muito tempo antes. Na década de 1960, mergulhou no abstracionismo sobre fundo escuro. Denso e gestual. Textura da matéria que salta aos olhos. 



A pintura abstrata surgiu da elaboração continua do objeto de curiosidade mais notório do Iberê: os carreteis de linha. Esse pequeno brinquedo de infância tornou-se uma marca. Sua assinatura. Pintou carreteis sobre a mesa, ora equilibrados uns sobre os outros, soltos, em movimento, desfigurados, até transcenderem à abstração.  A mostra é apenas um recorte do vasto acervo de mais de cinco mil obras que a instituição Iberê Camargo possui. Mas foi o suficiente para me apresentar algo inédito – as paisagens aquáticas dos anos de 1940, início de sua carreira. A experiência diante das telas altera quando se distancia ou se aproxima. A retina procura deter a melhor impressão das pinceladas rápidas e certeiras. Cor. Camadas verdes da mata refletem sobre a superfície de córregos, lagos ou rios. Sombra e luz. Lodo e barro das profundezas aquáticas. Espelho do selvagem, do intocado. Iberê do início. Iberê do fim. Retornou ao tema paisagem antes de morrer de câncer.   


Saio do museu. Sigo pela orla do Guaíba. Metade de mim, impregnado pelas últimas cores que dissipam sobre o rio. A outra, entorpecido com as entranhas da natureza reviradas pela paleta de Iberê Camargo. Impossível terminar o dia indiferente.  

por Juliano Mignacca




Compensa navegar pelo site da Fundação Iberê Camargo:

Curta a página do Isso Compensa no Facebook:

Grande Sertão, Deus e o Diabo, as gentes e as veredas: Guimarães Rosa nas frases da travessia

$
0
0
Uma seleção de frases e pensamentos para comemorar os 60 anos da publicação do "Grande Sertão: Veredas"(1956), de João Guimarães Rosa, Ipsis Litteris:

"Conto ao senhor é o que eu sei e o senhor não sabe; 
mas principal quero contar é o que eu não sei se sei, 
e que pode ser que o senhor saiba."

João Guimarães Rosa, no Sertão de Minas Gerais, 1952
O SERTÃO

"O senhor tolere, isto é o sertão.”

“O sertão está em toda a parte.”

“O sertão é dentro da gente.”

“O sertão é do tamanho do mundo.”

“O sertão é sem lugar.”

“O sertão é uma espera enorme.”

“O sertão não chama ninguém às claras; mais, porém, se esconde e acena.”

“O sertão não tem janelas, nem portas. E a regra é assim: ou o senhor bendito governa o sertão, ou o sertão maldito vos governa.”

“O sertão é confusão em grande demasiado sossego.”

"O sertão me produz, depois me engoliu, depois me cuspiu do quente da boca."

“Sertão é isto o senhor sabe: tudo incerto, tudo certo."

"Sertão é o penal, criminal. Sertão é onde homem tem de ter a dura nuca e mão quadrada.”

"No sertão, até enterro simples é festa."

"Sertão: estes seus vazios. O senhor vá. Alguma coisa, ainda encontra.”

"Sertão, - se diz -, o senhor querendo procurar, nunca não encontra. De repente, por si, quando a gente não espera, o sertão vem."

“Sertão: quem sabe dele é urubu, gavião, gaivota, esses pássaros: eles estão sempre no alto, apalpando ares com pendurado pé, com o olhar remedindo a alegria e as misérias todas.”

"Sertão. Sabe o senhor: sertão é onde o pensamento da gente se forma mais forte do que o poder do lugar. Viver é muito perigoso..."

"O gerais corre em volta. Esses gerais são sem tamanho. Enfim, cada um o que quer aprova, o senhor sabe: pão ou pães, é questão de opiniães... O sertão está em toda a parte."

"Sempre, nos gerais, é a pobreza, à tristeza. Uma tristeza que até alegra..."

"Sertão sempre. Sertão é isto: o senhor empurra para trás, mas de repente ele volta a rodear o senhor dos lados. Sertão é quando menos se espera.”

“A gente tem de sair do sertão! Mas só se sai do sertão é tomando conta dele a dentro.”

“Travessia perigosa, mas é a da vida. Sertão que se alteia e se abaixa. Mas que as curvas dos campos estendem sempre para mais longe. Ali envelhece vento. E os brabos bichos, do fundo dele.”

“Mas nós passávamos, feito flecha, feito fogo, feito faca.”


“Sertão é onde manda quem é forte, com as astúcias. Deus mesmo, quando vier, que venha armado!”

DEUS

"Eu cá, não perco ocasião de religião. Aproveito de todas. Bebo água de todo o rio... uma só para mim é pouca, talvez não me chegue."

"O grande-sertão é a forte arma. Deus é um gatilho?"

“A força de Deus quando quer – moço! – me dá o medo pavor! Deus vem vindo: ninguém não vê. Ele faz é na lei do mansinho – assim é o milagre. E Deus ataca bonito, se discutindo, se economiza.”

“Refiro ao senhor: um outro doutor, doutor rapaz, que explorava as pedras turmalinas no vale do Arassuaí, discorreu me dizendo que a vida da gente encarna e reencarna, por progresso próprio, mas que Deus não há. Estremeço. Como não ter Deus? Com Deus existindo, tudo dá esperança: sempre um milagre é possível, o mundo se resolve. Mas, se não tem Deus, há-de a gente perdidos no vai-vem, a vida é burra. É o aberto perigo das grandes e pequenas horas, não se podendo facilitar – é todos contra os acasos. Tendo Deus, é menos grave se descuidar um pouquinho, pois, no fim dá certo.”

“Deus existe mesmo quando não há. Mas o demônio não precisa de existir para haver.”

O DIABO

"Do vento. Do vento que vinha, rodopiado, Redemoinho: senhor sabe – a briga de ventos. Quando um esbarra com outro, e se enrolam, o doido do espetáculo."

"Fosse lhe contar... Bem, o diabo regula seu estado preto, nas criaturas, nas mulheres, nos homens. Até: nas crianças - eu digo. Pois não ditado: menino - trem do diabo? E nos usos, nas plantas, nas águas, na terra, no vento... Estrumes. ... O diabo na rua, no meio do redemoinho."


"Por mim, tantos vi, que aprendi. Rincha-Mãe, Sangue-d'Outro, o Muitos-Beiços, o Rasga-em-Baixo, Faca-Fria, o Fancho-Bode, um Treciziano, o Azinhavre... o Hermógenes... Deles, punhadão."

"Explico ao senhor: o diabo vige dentro do homem, os crespos do homem - ou é o homem arruinado, ou o homem dos avessos. Solto, por si, cidadão, é que não tem diabo nenhum. Nenhum! - é o que digo." 

“E me inventei nesse gosto de especular idéia. O diabo existe e não existe. Dou o dito. Abrenúncio. Essas melancolias.”

"Nonada. O diabo não há! É o que eu digo, se for... Existe é homem humano. Travessia."


AS GENTES

“Coração de gente — o escuro, escuros.”

“O que lembro, tenho.”

“Em Diadorim penso também. Mas Diadorim é minha neblina”

“Quando se curte raiva de alguém, é a mesma coisa que se autorizar que essa própria pessoa passe durante o tempo governando a idéia e o
sentir da gente.”

“Só se pode viver perto de outro, e conhecer outra pessoa, sem o perigo de ódio, se a gente tem amor. Qualquer amor já é um pouquinho de saúde, um descanso na loucura.”

"O senhor não duvide – tem gente, neste aborrecido mundo, que matam só para ver alguém fazer careta... vem o pão, vem a mão, vem o cão."

"O senhor saiba: eu toda a minha vida pensei por mim, forro, sou nascido diferente. Eu sou é eu mesmo. Diverjo de todo o mundo... Eu quase que nada não sei. Mas desconfio de muita coisa.”

"Uma coisa é pôr ideias arranjadas, outra é lidar com país de pessoas, de carne e sangue, de mil-e-tantas misérias... Tanta gente – dá susto de saber – nenhum se sossega: todos nascendo, crescendo, se casando, querendo colocação de emprego, comida, saúde, riqueza..."

"Mire veja: o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas – mas que elas vão sempre mudando. Afinam ou desafinam.”

"Mire veja: o que é ruim, dentro da gente, a gente perverte sempre por arredar mais de si. Para isso é que o muito se fala?"

"As pessoas, e as coisas, não são de verdade! E de que é que, a miúde, a gente adverte incertas saudades? Será que, nós todos, as nossas almas já vendemos?"

"A colheita é comum, mas o capinar é sozinho."


AS VEREDAS

“O real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia."

"Tem horas em que penso que a gente carecia, de repente, de acordar de alguma espécie de encanto."

"Sozinho sou, sendo, de sozinho careço, sempre nas estreitas horas – isso procuro."

“Eu careço que o bom seja bom e o ruim ruim, que dum lado esteja o preto e do outro o branco, que o feio fique bem apartado do bonito e a alegria longe da tristeza! Quero todos os pastos demarcados. Como é que posso com este mundo? A vida é ingrata no macio de si; mas transtraz a esperança mesmo do meio do fel do desespero. Ao que, este mundo é muito misturado.”

"O rio não quer ir a nenhuma parte, ele quer é chegar a ser mais grosso, mais fundo."

"Tempo que me mediu. Tempo? Se as pessoas esbarrassem, para pensar - tem uma coisa! -: eu vejo é puro tempo vindo de baixo, quieto mole, como a enchente duma água... Tempo é a vida da morte: imperfeição."

“Vivendo, se aprende; mas o que se aprende, mais, é só a fazer outras maiores perguntas”

“O senhor sabe o que silêncio é? É a gente mesmo, demais.”

Guimarães Rosa
acendendo o pito na brasa do sertão
Minas Gerais, 1952
Foto por Eugênio Silva

GUIMARAES ROSA, João. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: José Olympio, 1956.

Disponível em PDF em: http://ow.ly/Bw2w301G34t


Curta a página do Isso Compensa no Facebook: 

O Balcão: a capela Sistina do teatro

$
0
0
por Rodrigo Morais


Um dos momentos mais marcantes da história do teatro brasileiro: a montagem de O Balcão, de Jean Genet, feita pelo encenador franco-argentino Victor Garcia, estreada a 29 de dezembro de 1969. Produzida pela atriz Ruth Escobar, para que essa montagem fosse realizada foi necessário praticamente destruir o palco de seu teatro, no intuito de abolir a separação (convencional) entre atores e espectadores. Para tal, o palco foi escavado e, do porão até os urdimentos, foi erguido um cilindro em cujos passadiços o público se acomodava, permitindo a ele acompanhar a ação no bordel de luxo como um voyeur. O cenário foi concebido por Wladimir Pereira Cardoso.


Conforme relata o crítico teatral Sábato Magaldi, em seu livro Depois do Espetáculo, “iluminava-se o ambiente por meio de um espelho parabólico, escavado no concreto do porão, cinco metros abaixo do palco. Desenhou-se uma concha elipsoidal com plástico espelhado, desempenhando funções semelhantes à de um farol de automóvel. Um módulo subia e descia: era de ferro vazado, com acrílico. Passavam-se aí muitas cenas, mas atores distribuíam-se por todo o teatro, inclusive nos passadiços para o público. Do urdimento, descia uma rampa, em espiral, com nove metros de altura, sendo utilizada em alguns quadros (do espelho parabólico aos urdimentos havia 20 metros de altura). Além disso, foram instalados cinco elevadores individuais e dois guindastes suspendiam duas gaiolas, para o diálogo de Irma e Carmen. Os atores também usavam plataformas, verdadeiros trampolins. Uma cama ginecológica entrava no módulo sem necessidade de que ninguém a empurrasse. Uma parte da estrutura metálica (86 toneladas de ferro), de seccionamento treliçado, abria-se para a entrada dos revolucionários”.


Para Magaldi, O Balcão talvez tenha sido o espetáculo mais importante na carreira de Victor Garcia. Contando com um elenco enorme, repleto de grandes talentos, como, por exemplo, Célia Helena, Jofre Soares, Lilian Lemmertz, Ney Latorraca, Paulo César Pereio, Raul Cortez e Teresa Rachel, além de muitos outros nomes de peso, apenas a plateia de São Paulo teve acesso a essa obra, uma vez que o seu translado era inviável, comercial e logisticamente. De qualquer forma, foi feito um filme dessa memorável encenação, do qual aqui se vê uma pequena parte. Ao assisti-lo na íntegra, quando exibido no exterior, um professor iraniano teria exclamado: “a Capela Sistina do Teatro”.


Compensa:









Coluna: Teatro






A Great Day in Harlem: a mais sensacional fotografia da era do jazz

$
0
0
Na manhã de terça-feira, 12 de agosto de 1958, Art Kane tirou "a mais sensacional fotografia da era do Jazz", com 57 grandes músicos numa rua do Harlem (17 East 126th street, NY). Nunca mais ninguém conseguirá reunir tanto talento em uma foto. Nunca mais.


Estavam presentes: Hilton Jefferson, Benny Golson, Art Farmer, Wilbur Ware, Art Blakey, Chubby Jackson, Johnny Griffin, Dickie Wells, Buck Clayton, Taft Jordan, Zutty Singleton, Red Allen, Tyree Glenn, Miff Molo, Sonny Greer, Jay C. Higginbotham, Jimmy Jones, Charles Mingus, Jo Jones, Gene Krupa, Max Kaminsky, George Wettling, Bud Freeman, Pee Wee Russell, Ernie Wilkins, Buster Bailey, Osie Johnson, Gigi Gryce, Hank Jones, Eddie Locke, Horace Silver, Luckey Roberts, Maxine Sullivan, Jimmy Rushing, Joe Thomas, Scoville Browne, Stuff Smith, Bill Crump, Coleman Hawkins, Rudy Powell, Oscar Pettiford, Sahib Shihab , Marian McPartland, Sonny Rollins, Lawrence Brown, Mary Lou Williams, Emmett Berry, Thelonious Monk, Vic Dickenson, Milt Hinton, Lester Young, Rex Stewart, J.C. Heard, Gerry Mulligan, Roy Eldridge, Dizzy Gillespie, Count Basie... algumas mulheres e a criançada do Harlem.


Batizada de "A Great Day In Harlem", um grande dia no Harlem, foi publicada em janeiro de 1959 na revista Esquire. Incrível que foi a primeira fotografia de Art Kane, então com 33 anos, que além de clicar, produziu a foto e conseguiu contatar os músicos e marcar o encontro para as 10hs, madrugada para músicos que viviam da noite. Nas palavras do próprio fotógrafo: "the greatest picture of that era of musicians ever taken”.

A curiosidade é que a foto aparece no filme “O Terminal”, do Spielberg, com o Tom Hanks preso no aeroporto tentando entrar em Nova York para conseguir o autógrafo de Benny Golson e completar a coleção iniciada por seu pai falecido.


No vídeo abaixo, um trecho do documentário sobre a foto produzido em 1994, também chamado de “A Great Day in Harlem”:



Ingmar Bergman e um mergulho no rio escuro do cinema

$
0
0
por Juliano Mignacca

O filme é um sonho, como a música. 
Nenhuma arte passa à nossa consciência da maneira que o filme faz. 
Ele vai diretamente aos nossos sentimentos e toca o fundo de nossas almas.
Ingmar Bergman

Bergman, O Sétimo Selo, 1956
Na cena final do filme Luz de Inverno, de Ingmar Bergman, há um diálogo entre o pastor e o ajudante da igreja no qual este especula que a dor física de Cristo teria sido insignificante se comparada à dor de quando ele gritou: “Deus, meu Deus! Porque me abandonastes?” Prossegue a personagem de Allan Edwall: “Jesus acreditou que tudo aquilo que ele havia pregado fora em vão. No momento antes de morrer, Cristo foi tomado pela dúvida. Certamente este deve ter sido seu maior sofrimento. O silêncio de Deus”. O trecho desse magnífico filme de 1962 ilustra um dos temas mais recorrentes na obra do sueco Ingmar Bergman (1918-2007): o silêncio, a afasia de Deus.

Bergman, Luz de Inverno, 1962
As personagens são impotentes para resolver suas angústias. As convicções religiosas podem amenizá-las. Mas, se a fé é invenção do homem, como dizer que Deus também não é? Se ele existe, por que não se manifesta? Dúvidas. Qual certeza se tem do que vem após a morte? Como todo mundo, Bergman não pode responder a essas perguntas. Ainda assim,é interessante como seus filmes lidam de forma direta sobre essas questões. Sem metáforas. Não há rodeios. Da mesma maneira aborda outras tantas inquietações do homem. As existenciais em Morangos Silvestres (1957). A sensualidade, o desejo como motor da vida em Monika e o Desejo (1952). O filme Persona (1966), uma obra-prima, cuja densidade psicanalítica se soma a uma experimentação estética de grande refinamento. A busca pela identidade espiritual em Sétimo Selo (1956).Cenas de um Casamento (1973), produzido para a TV sueca, que retrata como a idealização da felicidade a dois pode ser repentinamente arruinada. É como um soco no estômago a frieza e a agressividade dos diálogos no processo de separação do casal. Sua obra é aberta às investigações da vida. Por isso tem ressonância em qualquer lugar e qualquer período. É atemporal.  

Bergman, O Sétimo Selo, 1956
É improvável refletir sobre Bergman algo que ainda não tenha sido dito pela crítica ou observado pelos amantes da sétima arte. Há milhares de textos sobre o autor e sua obra. Até mesmo porque são mais de 50 filmes numa carreira de 60 anos. Por incrível que pareça, teve uma vida profissional ainda mais fecunda com o teatro. Produziu três vezes mais para essa outra arte. Foi um artista completo. Diretor e roteirista, tinha enorme capacidade de extrair atuações impressionantes de seus atores. Trabalhava quase sempre com os mesmos, todos excepcionais, diga-se de passagem.

Liv Ullman, Persona, 1966
Descobriu mulheres lindas para papéis marcantes. Como não se apaixonar por elas? Ele próprio não pôde escapar. Relacionou-se com a belíssima Bibi Andersson e com Liv Ullman, com quem  fez 10 filmes e uma filha. Uma das atrizes mais emblemáticas da historia do cinema. Conquistou também a estonteante Harriet Andersson, que trabalhava como ascensorista quando a conheceu. Para que ela atuasse, realizou Monika e o Desejo. O filme causou enorme escândalo em festivais de cinema, sobretudo na América do Sul, primeiro lugar do mundo onde seus filmes teriam ganhado reconhecimento, antes mesmo que na Suécia. Dirigiu a espetacular Ingrid Thulin e Kari Sylwan, que trabalhou em Gritos e Sussurros e Face a Face. Todas elas alternando entre papéis frágeis e densos. Ora protagonistas, ora como coadjuvantes. E como não mencionar os atores, cujas atuações certamente permanecem latentes na memória dos cinéfilos. Erland Josephson, Gunnar Björnstrand, Max Von Sydow...

Harriet Andersson, Monika e o Desejo, 1952
Ingrid Thulin e Max Von Sydow, A Hora do Lobo, 1968
Liv Ullman e Kari Sylwan, Gritos e Sussurros, 1972
Em julho o cineasta completou aniversário de vida e morte. Será sempre oportuno reverenciá-lo. Afinal, é um dos maiores artistas da história do cinema. Penetrar na obra de Bergman é como um mergulho num rio à noite, na escuridão das incertezas. A diferença é que no rio, quando necessário, é possível emergir em busca de luz e segurança. Com o cinema de Bergman, dificilmente se sairá ileso.

Juliano Mignacca

Ingmar Bergman (*14/07/1918 +30/07/2007)

Coluna: Cinema


O espírito sonoro de John Coltrane

$
0
0
por Homero Nunes


John Coltrane nasceu com um nome sonoro, pronto para a carreira artística, em 23 de setembro de 1926. Coltrane, “Soultrane”, “Trane” apenas. Há quem goste do cara apenas pelo sobrenome que causa aquele impacto nas conversas sobre música: John Col-trane, “cool-train” (“trem bão”, no mineirês). Mas além da retórica que impressiona o aborígene, o impacto do sujeito na história foi mesmo o estilo livre no sax, acordes, extensões, camadas e tudo mais que o instrumento pode soprar na alma. Um sujeito de espírito mais sonoro que o nome.

John Coltrane no Guggenheim Museum, NYC, 1960 - Foto por William Claxton
Morreu cedo, aos 40, após de cumprir a tarefa da originalidade e se tornar o maior saxofonista tenor da era do Jazz. Aos vinte e poucos, o menino já tocava com os grandes: Charlie Parker, Dizzy Gillespie, Thelonious Monk, Miles Davis. Em menos de duas décadas, nos anos 50 e 60, até o câncer, soprou frases eternas do estilo, acordes definitivos do sax. Experimentou, pesquisou, escreveu, reinventou tudo.

John Coltrane e Dizzy Gillespie
Começou escutando a mãe no coral da igreja, sob a rigidez da educação que o velho reverendo imprimia aos seus, naquele fim de mundo do interior da Carolina do Norte. Quando morreu o pastor, o garoto de 13 anos já tocava clarinete na escola e, poucos anos depois, experimentava o sax alto na Filadélfia, a terra prometida da mãe viúva gospel. Em 1945 entrou para a Marinha, serviço digno de endireitar rapazes, afinando mais uma vez o som do clarinete que acordava as tropas. Quando pediu baixa, era em tempo de soprar o alto e pescar as gorjetas nos baldes dos bares, tentar ser descoberto. Foi, foi sim.

John Coltrane e Miles Davis
Aos 21 anos começou a tocar ao lado do pássaro, Bird, Charlie Parker. Consumido pelo gênio, não dava para rivalizar no mesmo instrumento, o sax alto de antes. Entrou com tudo no tenor, o saxofone do seu sucesso. Daí foi coadjuvante de Dizzy Gillespie, circulou pelo universo das big bands, acompanhou o piano de Thelonious Monk e a voz de Dinah Washington e, por fim e nunca menos importante, tornou-se a quinta parte daquele imortal “Miles Davis Quintet”. Diversos discos e gravações, dezenas deles, mais de 100 álbuns em participações, contratos e acompanhamentos, shows e montantes bancários depois, seguiu solo também, adiante.


Com Miles Davis gravou “Kind of Blue” (1959), o mais influente álbum do mestre, considerado com o merecido exagero um dos melhores discos já gravados... de todos os tempos, estilos, artistas e mundos conhecidos. Uma joia rara da modalidade, o diamante de Miles Davis. Sozinho, com seu próprio grupo, gravou “Blue Train” (1957) e “A Love Supreme” (1964), seu próprio quinhão de riqueza. Dois blues definitivos e um amor supremo, para tocar no meu enterro.


Desde cedo, imitando os vícios dos ídolos e patrões, foi tomado por goles e picadas, álcool e heroína. Frequentador assíduo do fundo do poço. Abandonado e por vezes resgatado, recaído e deixado, desistido, emergia com energia na música, melhor, mais sofrido como exigia o blues que tocava, o Jazz. Enfim, sobreviveu por um tempo, encontrando força espiritual em diversas religiões e múltiplos deuses.


De infância protestante, foi flertar com Alá e o Corão, depois com rituais africanos e bonecos vodu, xamãs, meditou com os budistas, queimou incensos no hinduísmo, jogou a cabala, estudou filosofia antiga, a flauta de Sócrates e a caverna de Platão, o cinismo e o epicurismo. Trouxe o espírito para o som, misturou influências clássicas da música ocidental com as tradicionais da música oriental, buscando a audição dos benditos e as notas dos que tem fé. Meditação, transe, ritmos hipnóticos, extensões complexas.


Entrou numas, levitando improvisações, experimentando com intensidade, assumindo os perigos da vanguarda. De tanto pesquisar e dilatar as sonoridades que o saxofone nem sabia que podia, desagradou os puristas, apanhou dos críticos, encalhou nas gravadoras. Enfim, decaiu em si mesmo até o câncer tomar conta. Era demais para os ouvidos dos simples mortais. Eles só viriam a entendê-lo após a morte precoce, quando John Coltrane virou santo, um milagre do Jazz.


Sem eufemismos, na Igreja Ortodoxa Africana John Coltrane, que existe há 43 anos em Los Angeles, o santo mais cultuado é ele, o sujeito que tem sonoridade no espírito e até no nome de batismo. Ele está no meio de nós.

John Coltrane *23 de setembro de 1926 + 17 de julho de 1967

Coluna: Música


Pílulas de literatura: Tolstoi e A Morte de Ivan Ilich

$
0
0


“'Viver? Viver como?', indagou a voz em sua alma.
'Sim, viver como eu vivia antes: agradavelmente, facilmente.'
'Como é que tu vivias agradavelmente e facilmente?', indagou a voz. E começou a passar em revista na imaginação os instantes melhores de sua agradável existência. Mas – coisa estranha! – esses instantes tomavam aos seus olhos um aspecto inteiramente diverso do que outrora possuíam. Todos, à exceção das primeiras lembranças de sua infância. Houvera na sua infância algo verdadeiramente belo que o teria ajudado a viver agora, se lhe fosse possível ressuscitá-lo. Mas aquele que vivera esse algo não mais existia: era como se se tratasse de outro homem.
Nem bem começavam aquela série de acontecimentos que tinham finalmente redundado no Ivan Ilitch atual, todas as alegrias que ele vivera, que então lhe pareciam como tais, dissipavam-se diante de seus olhos e transformava-se em algo mesquinho e até mesmo vil.
E quanto mais as recordações de Ivan Ilitch se afastavam da infância, mais se aproximavam do presente, mais as alegrias que vivera lhe pareciam duvidosas e ocas."

TOLSTOI, Liev. A Morte de Ivan Ilitch. 1866.
(L&PM Pocket, 2015, Cap. IX, p. 70)

Imagem: Frédéric Bazille, Hospital de Campanha Improvisado, 1865


H.L. Mencken e o retrato de um alcoólico mundo ideal

$
0
0
Jornalista, crítico, iconoclasta, mau humorado por excelência, irônico e beberrão, H. L. Mencken (1880 – 1956) ficou famoso nas primeiras décadas do século XX por seu estilo ácido, opinativo, que corroía as estruturas do American Way. Borrifava acidez para todos os lados, ninguém escapava, mas seu alvo preferencial era mesmo o americano médio, chamado sempre de idiota, besta, pobre coitado burro e sem inteligência. Com ironia e sarcasmo, desenvolvia textos floreados e argumentos malucos sobre Deus e o mundo. No artigo selecionado abaixo, escrito em 1924, em plena Lei Seca americana, Mencken propõe um “mundo ideal”, no qual a ideia principal era manter a humanidade “ligeiramente alta”, em doses alcoólicas para aplacar os ímpetos e melhorar os outros. Cheers!



RETRATO DE UM MUNDO IDEAL
por H.L. Mencken

“Que o álcool numa solução diluída em água, quando tomado pelo organismo humano, atua como depressor e não como estimulante, é hoje um clichê tão batido que até os fisiólogos mais avançados estão começando a tomar conhecimento dele. O leigo inteligente não recorre à garrafa quando tem compromissos importantes a resolver, sejam intelectuais ou manuais; ele deixa a primeira dose para depois do trabalho feito, quando deseja relaxar a tensão e reduzir a pressão de seu mau humor. O álcool, por assim dizer, nos desenreda. Ele levanta o toldo da sensação e nos torna menos sensíveis aos estímulos externos e, particularmente, àqueles que nos são desagradáveis. Ao pôr um freio em todas as qualidades que nos permitem tocar a vida e brilhar diante dos colegas – por exemplo, a combatividade, a agudeza, a diligência, a ambição –, o álcool liberta as qualidades que nos enternecem e fazem com que as pessoas gostem de nós: a afabilidade, a tolerância, a generosidade, o humor, a simpatia. Um homem com dois ou três drinques a bordo não será capaz de amputar a perna de alguém, pilotar um avião ou reger a missa em si menor de Bach, mas será imensamente mais competente para dar uma festa, admirar uma mulher bonita ou ouvir a missa em si menor de Bach. As coisas mais difíceis e úteis do mundo, como extrair dentes ou descascar batatas, ficam melhores quando feitas por pessoas tão sóbrias quanto os condenados às vésperas da execução. Mas as coisas mais gostosas, inúteis e divertidas deveriam ficar a cargo daqueles já devidamente lubrificados. O Pithecanthropus erectusera abstêmio, mas os anjos sempre souberam o que lhes convinha às cinco da tarde.

Tudo isto é tão óbvio que me espanto ao ver que nenhum utópico, até hoje, se propôs a abolir todas as lamentações do mundo pelo simples artifício de manter toda a humanidade ligeiramente alta. Note bem, eu não disse bêbada; disse ligeiramente alta – e peço desculpas por não saber como descrever este estado numa frase menos indecorosa. O homem ligeiramente calibrado pelo álcool é capaz de pôr suas melhores qualidades para fora. Ele não é apenas imensamente mais amável do que o indivíduo que vive a seco; é também imensamente mais decente. Reage a todas as situações de maneira expansiva, generosa e humana. Torna-se mais liberal, tolerante e agradável. É melhor cidadão, marido, pai e amigo. Às iniciativas que tornam a vida humana insegura e desconfortável nunca são tomadas por este homem: ele não declara guerras, não rouba nem oprime ninguém. Todas as grandes vilanias na História foram perpetradas por homens sóbrios e, principalmente, por abstêmios. Mas todas as coisas belas, do Cântico dos Cânticos à tartaruga à Maryland, das nove sinfonias de Beethoven ao martíni seco, foram concebidas por homens que, na hora certa, trocavam a água da bica por algo mais colorido e com outros ingredientes que não apenas hidrogênio e oxigênio.

Estou ciente, é claro, que manter toda a espécie humana neste paraíso, ano após ano, apresentaria formidáveis dificuldades técnicas. Seria difícil calcular a dosagem diária de cada indivíduo conforme exatamente suas necessidades particulares, e fazê-lo tomá-la precisamente na hora certa. Por um lado, haveria o constante perigo de que grandes minorias tornassem ocasionalmente sóbrias e, com isso, começassem guerras, disputas teológicas, reformas morais e outros aborrecimentos. Por outro lado, haveria o perigo de que outras minorias fossem levadas a uma real intoxicação e começassem a nos amolar com suas choraminguices xexelentas. Mas tais obstáculos técnicos não são, de forma alguma, insuperáveis. Talvez pudessem ser resolvidos abandonando-se a ideia da administração do álcool per ora e distribuindo-o mais democraticamente, apenas impregnando o ar com ele. Deixo a sugestão e passo adiante, porque tais problemas são para homens com prática em terapêutica, em governo e em eficiência nos negócios. Estes homens existem e suas iniciativas quase sempre mostram um alto grau de competência, mas, por passarem dia e noite sóbrios, devotam grande parte do tempo a nos atormentar. Meio chumbados, eles seriam dez vezes mais criativos e, talvez, pelo menos metade tão eficientes do que já são. Milhares deles, aliviados de seus atuais deveres antissociais, tornariam-se ociosos, logo ansiosos por uma ocupação. Confio neles para resolver este pequeno problema. Se não forem bem sucedidos completamente, pelo menos o serão pela metade.

Pode-se objetar que mesmo pequenas doses de álcool, se uma dose já estiver nos calcanhares da dose predecessora antes que os efeitos desta tenham se desanuviado, poderiam ter um efeito deletério sobre a saúde física da espécie – que a taxa de mortalidade aumentaria e que categorias inteiras de seres humanos seriam exterminadas. A resposta é a de que não estou propondo aqui aumentar a longevidade de ninguém, mas aumentar os seus prazeres. Suponhamos que a duração da vida seja reduzida em 20%. Minha resposta é a de que suas delícias crescerão em pelo menos 100%. Confundidos pelos estatísticos, caímos frequentemente no erro de dar importância a meros números. Dizer que A viverá até os oitenta anos e que B não passará dos quarenta não significa que A seja mais invejável do que B. Na realidade, A pode estar vivendo todos esses oitenta anos em buracos como Kansas ou Arkansas, onde não há nada para comer exceto milho e carne de porco, e nada para beber, exceto a água poluída do rio, enquanto B pode estar investindo pelo menos uns vinte anos na Côte d’Azur, wie Gott im Frankreich*. E minha convicção de que o mundo que estou pintando – presumindo-se que a duração média da vida humana será reduzida até em 50% – seria infinitamente mais feliz e charmoso do que o que vivemos hoje – e que nenhum ser humano inteligente, tendo provado sua paz e alegria, voltaria voluntariamente para as rudes brutalidades e cretinices que nos assolam e que nós, idiotamente, lutamos para preservar. Se os americanos inteligentes, nesses tempos deprimentes, ainda se agarram à vida e tentam esticá-la o mais que podem, não o fazem por lógica, mas por instinto. O homem sabe muito bem que dez anos num país realmente civilizado e feliz são infinitamente melhores do que toda uma época geológica sob as desgraças que somos obrigados a encarar e suportar no dia a dia.


Além disso, não há necessidade de admitir que a alcoolização moderada de toda a espécie humana iria reduzir materialmente a duração da vida. Muitos de nós já somos moderadamente alcoolizados e conseguimos sobreviver tanto quanto os abstêmios hidrófobos. Quanto a estes, alguém objetaria que o ar carregado de álcool lhes provocasse delirium tremensou que os esterilizasse ou exterminasse? A vantagem para a espécie em geral seria óbvia e incalculável. Todas as piores tensões – que agora não apenas persistem, mas parecem prosperar – seriam eliminadas em poucas gerações, o que permitiria ao homem médio trocar os sermões de seu pastor batista por Shakespeare, Mozart ou Goethe. Seria preciso uma eternidade, é claro, para tudo ficar perfeito, mas haveria progresso a cada geração, progresso gradual e seguro. Hoje, como deve parecer claro, não fazemos progresso nenhum; na verdade, estamos andando para trás. Que o homem civilizado médio de hoje é inferior ao homem civilizado médio de duas ou três gerações atrás é tão claro que dispensa explicações. Ele tem menos iniciativa e coragem; é menos criativo e heterogêneo; está mais para um coelho do que para um leão.

Duras repressões tornaram-no o que ele é. Bem, ninguém com dois ou três drinques no fígado é um tirano. Poderá parecer tolo, mas não cruel. Talvez fique um pouco barulhento, mas será também tolerante, generoso e educado. Minha proposta restauraria o cristianismo no mundo. Salvaria a humanidade dos moralistas, dos pedantes e dos ferrabrases.”

H.L. Mencken, 1924

*leben wie Gott in Frankreich, do alemão, “viver como Deus na França”

Fragmento d'O Livro dos Insultos:


MENCKEN, H. L.. O Livro dos Insultos. Seleção, tradução e prefácio de Ruy Castro. São Paulo: Cia das Letras, 1988.




Portrait of an Ideal World

Publicado originalmente em fevereiro de 1924, na segunda edição de The American Mercury, a revista editada por H.L. Mencken e George Jean Nathan, em Nova York.








Viewing all 82 articles
Browse latest View live