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No Coração das Trevas, o Apocalipse Agora

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"O horror, o horror". O contraste barroco do rosto de Marlon Brando surgindo das sombras, as mãos secando o suor, a mata fechada, o rio que serpenteia continente adentro, o xamã, a loucura.  Apocalypse Now, o clássico de Francis Ford Coppola, ao som de Jim Morrison e das Valquírias de Wagner, foi inspirado no livro O Coração das Trevas (1902) de Joseph Conrad, o escritor aventureiro enfiado nos cafundós do Congo Belga.


No livro, Kurtzé um caçador de marfim perdido na África, adaptado para o cinema como o coronel no profundo Vietnã, ou Camboja. Da terra sem lei para a lei da guerra, a história mistura aventura e loucura no perigo do desconhecido. Com cenários diferentes, atmosfera parecida, o enredo nos leva de barco por trechos alagados da sanidade, um labirinto psicológico cheio de armadilhas e peças pregadas. Cabeças fincadas em lanças, selvagens convertidos ao devaneio, vislumbres do ocaso, lusco-fusco.

Conrad foi mesmo capitão de um barco mercante no Congo Belga ao final do século XIX. Fugindo do suicídio, após tentativa frustrada, embarcou rumo ao fim do mundo, rio acima na África selvagem. Empunhou o leme, tateou os cenários do livro, sofreu na pele os perrengues da vida e as picadas dos mosquitos. Quase morreu, colecionando malárias. Quando voltou, imortalizou-se escrevendo o pequeno livro que um dia arrebataria Coppola.



Na linha de frente do colonialismo europeu, imperialismo, Conrad envergonhou-se, lamentou-se e, por fim, denunciou os crimes dos seus, expôs a face mais horrível do processo civilizador. A desorganização e a ineficácia da máquina imperialista, o desastroso projeto de dominação pela força, a degradação humana escondida em ideologias salvacionistas, civilizatórias. O que se queria era sempre o vil metal às custas do vil homem. Escuridão moral e violência extrema.


Coppola quase foi ao suicídio entre as monções, tentou pelo menos duas vezes durante as filmagens de 4 anos no fim do mundo. A equipe toda afundada nas Filipinas, muita lama e a crise existencial. Depressivo, obsessivo, angustiado, o diretor repetia tudo à exaustão, enlouquecendo a todos e a si. Por pouco não desistiu, por sorte do cinema. Tinha que aguentar os egos estratosféricos, apagar incêndios na equipe e suportar ele mesmo.  Gastos além do orçamento, dívidas imensas que pioravam tudo. Só faltava a malária. Mas Marlon Brando era mais que o ego, brilhante loucura. O filme saiu melhor que a encomenda, rara exceção que compete com o livro.



Do alto perdido do rio Congo à guerra do Vietnã, o sombrio ser humano, a degeneração, o mal, as trevas do coração, o apocalipse agora. O horror espalhado como o cheiro de Napalm pela manhã.


"Não, não me enterraram, embora tenha havido um período que recordo vagamente, com espanto e horror, como uma passagem por um mundo inconcebível, onde não havia nem esperança nem desejo. Achei-me de volta à cidade sepulcral, ressentindo a visão de pessoas com pressa nas ruas para roubar um pouco de dinheiro umas das outras, devorar sua infame cozinha, engolir sua cerveja insalubre, sonhar seus sonhos insignificantes e tolos. Atropelaram meus pensamentos. Eram intrusos cujo conhecimento da vida era para mim uma pretensão irritante, porque me sentia bastante seguro de que não tinham condições de saber as coisas que eu sabia. Suas maneiras, que eram simplesmente as maneiras de indivíduos comuns lidando com seus negócios na certeza da perfeita segurança, eram ofensivas para mim como a escandalosa empáfia dos tolos diante de um perigo que são incapazes de compreender. Não tinha nenhum desejo especial de iluminá-los, mas tinha alguma dificuldade em abster-me de rir nas suas caras tão cheias de estúpida importância. Acho que não me sentia muito bem nessa época. Perambulava pelas ruas – havia muitos assuntos para acertar – arreganhando amargamente os dentes para pessoas perfeitamente respeitáveis..."

CONRAD, Joseph. O Coração das Trevas. Porto Alegre: L&PM Pocket, 2004. (p. 135)
Tradução de Albino Poli Jr.



Apocalypse Now
Francis Ford Coppola, 1979
Com Marlon Brando, Robert Duvall, Martin Sheen, Laurence Fishburne e Dennis Hopper
















Em 1994 foi lançada uma adaptação de "O Coração das Trevas", com Tim Roth no papel do Capitão Marlow e John Malkovich encarnando Kurtz.
Dirigido por Nicolas Roeg.












Colunas: Literatura e Cinema



Bacon, o visceral Francis Bacon

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por Juliano Mignacca

Francis Bacon, Autorretratos
Incompreendido, abandonado, doente e homossexual na Irlanda católica. Esses foram os alicerces que moldaram a infância do artista Francis Bacon (1909 – 1992). Sua arte não poderia ser outra coisa senão arrebatadora. As figuras deformadas carregam toda expressividade visceral de Bacon. É impossível ficar indiferente diante de seus quadros. Eles causam sentimentos instantâneos. A fruição não resulta somente das qualidades próprias da obra, mas, sobretudo, da imaginação e do sensível de cada espectador.


Embora fosse um artista figurativo, seus quadros beiram o abstrato, o que nos deixa livres dos conceitos que fazemos das coisas representadas. Bacon não fazia a simples cópia natural de um rosto ou imitação de algo. Suas figuras são sublimes porque ele desenvolve uma ideia de como representá-las. O resultado são traços e cores que sintetizam toda carga emocional dos personagens e dele próprio.


Adapta a Bacon, considerado o maior pintor britânico do século 20, o que o pensador espanhol José Ortega y Gasset chamava de vontade de estilo: que é deformar o real, desumanizar, enquanto que uma arte puramente pictórica convida o artista a seguir às formas naturais das coisas.

Francis Bacon, por John Deakin, 1952
O Paço das Artes em São Paulo oferece a oportunidade para conhecer um pouco do trabalho dele. A exposição Italian Drawings possui 43 obras desenhadas a lápis e em cor realizadas em sua última década de vida. A coleção pertence ao seu ex-parceiro, o ítalo-americano Cristiano Lovatelli-Ravarino. São desenhos das recorrentes pinturas que fez durante sua carreira como a figuras do Papa Inocêncio X, inspirada na imagem pintada pelo artista espanhol Diego Velázquez no século 17, autorretratos e a Crucificação.



Pauta, texto e ideias disseminadas por Juliano Mignacca

Coluna: Arte


Arapuca literária! Os melhores inícios de livros em meia dúzia de capturas e arrebates

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“Todas as famílias felizes se parecem, 
cada família infeliz é infeliz à sua maneira.”
Frase de abertura de Anna Karienina, de Tosltoi

René Magritte, La Lectrice Soumise, 1928
Há livros que exigem a insistência, por importantes que são. Fazem a captura do leitor pela reputação, por mais difícil, por maior que seja a resistência a ser quebrada. Não há como fugir deles e da tarefa que impõem a muitos de nós. Literatura obrigatória. Outros, no extremo oposto, nos pegam pelo título, pela capa, pela indicação de qualquer um. Literatura de banheiro. Há, contudo, um tipo de livro que nos captura pela curiosidade, pela abertura das palavras e da cabeça, pelo início bem escrito que nos segura e arrebata. Verdadeiras arapucas literárias. Abaixo uma lista, limitada e excludente listinha, de meia dúzia de inícios de livros que são armadilhas para o leitor.

Deixe-se capturar e, por favor, se tiver algum início de livro que também considere uma arapuca, no bom sentido, contribua nos comentários.


A METAMORFOSE
Franz Kafka, 1915
“Quando certa manhã Gregor Samsa acordou de sonhos intranquilos, encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso. Estava deitado sobre suas costas duras como couraça, viu seu ventre abaulado, marrom, dividido por nervuras arqueadas, no topo do qual a coberta, prestes a deslizar de vez, ainda mal se sustinha. Suas pernas, lastimavelmente finas em comparação com o resto do corpo, tremulavam desamparadas diante dos seus olhos.
― O que aconteceu comigo? — pensou.
Não era um sonho. Seu quarto, um autêntico quarto humano, só que um pouco pequeno demais, permanecia calmo entre as quatro paredes bem conhecidas...”


KAFKA, Franz. A Metamorfose. São Paulo: Cia das Letras, 2008.
Tradução de Modesto Carone.













MEMÓRIAS PÓSTUMAS DE BRÁS CUBAS
Machado de Assis, 1880
“Algum tempo hesitei se devia abrir estas memórias pelo princípio ou pelo fim, isto é, se poria em primeiro lugar o meu nascimento ou a minha morte. Suposto o uso vulgar seja começar pelo nascimento, duas considerações me levaram a adotar diferente método: a primeira é que eu não sou propriamente um autor defunto, mas um defunto autor, para quem a campa foi outro berço; a segunda é que o escrito ficaria assim mais galante e mais novo. Moisés, que também contou a sua morte, não a pôs no intróito, mas no cabo; diferença radical entre este livro e o Pentateuco.
Dito isto, expirei às duas horas da tarde de uma sexta-feira do mês de agosto de 1869, na minha bela chácara de Catumbi. Tinha uns sessenta e quatro anos, rijos e prósperos, era solteiro, possuía cerca de trezentos contos e fui acompanhado ao cemitério por onze amigos. Onze amigos! Verdade é que não houve cartas nem anúncios. Acresce que chovia — peneirava — uma chuvinha miúda, triste e constante, tão constante e tão triste...”


Machado de Assis. Memórias Póstumas de Brás Cubas. 1880.














O VELHO E O MAR
Ernest Hemingway, 1952
“Era um velho que pescava sozinho em seu barco, na Gulf Stream. Havia oitenta e quatro dias que não apanhava nenhum peixe. Nos primeiros quarenta, levara em sua companhia um garoto para auxiliá-lo. Depois disso, os pais do garoto, convencidos de que o velho se tornara salao, isto é, um azarento da pior espécie, puseram o filho para trabalhar noutro barco, que trouxera três bons peixes em apenas uma semana. O garoto ficava triste ao ver o velho regressar todos os dias com a embarcação vazia e ia sempre ajuda-lo a carregar os rolos de linha, ou o gancho e o arpão, ou ainda a vela que estava enrolada à volta do mastro. A vela fora remendada em vários pontos com velhos sacos de farinha e, assim enrolada, parecia a bandeira de uma derrota permanente.
O velho pescador era magro e seco, e tinha a parte posterior do pescoço vincada de profundas rugas. As manchas escuras que os raios de sol produzem sempre, nos mares tropicais, enchiam-lhe o rosto, estendendo-se ao longo dos braços, e suas mãos estavam cobertas de cicatrizes fundas, causadas pela fricção das linhas ásperas enganchadas em pesados e enormes peixes. Mas nenhuma destas cicatrizes era recente...”


HEMINGWAY, Ernest. O Velho e o Mar. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2013. Tradução de Fernando de Castro Ferro.













O EGÍPCIO
Mika Waltari, 1945
“Eu Sinuhe, filho de Senmut e de sua mulher Kipa escrevo isto. Não o escrevo para a glória dos deuses da terra de Kan, porque estou cansado de deuses, nem para a glória dos faraós porque estou cansado de seus feitos. Tampouco escrevo por medo ou por qualquer esperança no futuro; escrevo para mim, apenas. O que vi, conheci e perdi durante a minha vida, foi coisa demasiada para que me domine um vão temor e, quanto a algum desejo de imortalidade, estou tão exausto disso quanto dos deuses e dos reis. É apenas por minha causa que escrevo, por tal motivo e essência diferindo eu de todos os escritores passados e vindouros.
Principio este livro no terceiro ano do meu exílio, nas praias do mar Oriental de onde os navios saem para as terras do Ponto; aqui, perto do deserto, junto àquelas colinas cuja pedra foi retirada para a construção das estátuas dos primitivos deuses. Escrevo porque já agora o vinho é amargo para a minha boca, porque perdi o prazer que achava nas mulheres e porque nem jardins nem lagos com peixes me distraem mais. Expulsei os cantores, pois o som proveniente de sopro ou de cordas é tormento para os meus ouvidos. Por conseguinte eu, Sinuhe, escrevo isto já que não me importo...”


WALTARI, Mika. O Egípcio. São Paulo: Editora Brasileira, 1964.
Tradução de José Geraldo Vieira.













LOLITA
Vladimir Nabokov, 1955
“Lolita, luz de minha vida, labareda em minha carne. Minha alma, minha lama. Lo-li-ta: a ponta da língua descendo em três saltos pelo céu da boca para tropeçar de leve, no terceiro, contra os dentes. Lo. Li. Ta.
Pela manhã ela era Lô, não mais que Lô, com seu metro e quarenta e sete de altura e calçando uma única meia soquete. Era Lola ao vestir os jeans desbotados. Era Dolly na escola. Era Dolores sobre a linha pontilhada. Mas em meus braços sempre foi Lolita.
Será que teve uma precursora? Sim, de fato teve. Na verdade, talvez jamais teria existido uma Lolita se, em certo verão, eu não houvesse amado uma menina primordial. Num principado à beira-mar. Quando foi isso? Cerca de tantos anos antes de Lolita haver nascido quantos eu tinha naquele verão. Ninguém melhor do que um assassino para exibir um estilo floreado. Senhoras e senhores membros do júri, o item número um da acusação é aquilo que invejavam os serafins - os desinformados e simplórios serafins de nobres asas. Vejam este emaranhado de espinhos.


NABOKOV, Vladimir. Lolita. São Paulo: Biblioteca Folha, 2003.
Tradução de Jorio Dauster.













MEDO E DELÍRIO EM LAS VEGAS
Hunter Thompson, 1971
“Estávamos em algum lugar perto de Barstow, à beira do deserto, quando as drogas começaram a fazer efeito. Lembro que falei algo como "estou meio tonto; acho melhor você dirigir…" E de repente fomos cercados por um rugido terrível e o céu se encheu de algo que pareciam morcegos imensos, descendo, guinchando e mergulhando ao redor do carro, que avançava até Las Vegas a uns 160 por hora, com a capota abaixada. E uma voz gritava: "Jesus Santíssimo! Que diabo são esses bichos?"
Então o silêncio voltou. Meu advogado tinha tirado a camisa e estava derramando cerveja no peito para facilitar o processo de bronzeamento. “Por que você tá gritando, porra?”, resmungou, olhando para o sol com os olhos fechados e protegidos por óculos escuros espanhóis que se ajustavam à cabeça. “Deixa pra lá”, respondi. “É sua vez de dirigir.” Pisei no freio e conduzi o Grande Tubarão Vermelho até o acostamento da rodovia. Melhor nem citar os morcegos, pensei. Não ia demorar para que o infeliz também os visse.
Era quase meio-dia e ainda tínhamos cerca de duzentos quilômetros pela frente. Seriam quilômetros difíceis. Eu sabia que muito em breve nós estaríamos completamente alucinados. Mas não havia mais volta, nem tempo para descansar. Precisávamos seguir em frente...”


THOMPSON, Hunter S. Medo e delírio em Las Vegas: uma jornada selvagem ao coração do Sonho Americano. São Paulo: LP&M, 2010.
Tradução Danil Pellizzari e Ilustrações de Ralph Steadman.















Independência ou Morte! A história e o ofício de uma arte no Brasil

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por Homero Nunes


A independência brasileira foi ilustrada nos livros de história pela pintura do momento simbólico, quando Dom Pedro heroicamente ergueu a espada, rompeu laços com Portugal e bradou, retumbantemente, “Independência ou Morte” às margens plácidas do Ipiranga. A história oficial tratou como épico o feito maior dos Bragança no Brasil. Num só grito em paisagem tropical, era a independência da colônia centenária que ainda se manteria presa à linhagem da corte portuguesa por mais dois terços de século, ironicamente. Em 7 de setembro de 1822, naquele riachinho Ipiranga, arrabaldes de São Paulo, brotou o mito da construção do Império. Um trecho d’água qualquer, lugar bom para dar de beber aos cavalos, mulas e afins oriundos de Portugal. “Laços fora soldados!”, foi o que se escutou além dos relinchos, “Viva o Brasil separado!”, discurso oficial e a divisa de efeito: “Independência ou Morte”. Heroico brado retumbante. Nas décadas seguintes, o relato de um tal Padre Belchior, devidamente exagerado, floreado, lixado e escovado, foi difundido para fundar o país. Bustos de Dom Pedro I em bronze na fundição, no mármore, nas telas. Era preciso escrever a história grande, muito maior que os escândalos sexuais do imperador e o fato de que menos de uma década depois ele abandonaria o Brasil para lutar sua guerrinha familiar na Europa. Deixou aqui o Pedrinho, aos 14, condenado à Monarquia.

Dom Pedro II, 1888
Já de barbas brancas, erodido pelo tempo e pelo país, Pedro II seria deposto em 1889 pelos republicanos, sem guilhotina nem nada, 100 anos após a Revolução Francesa. Não que o velho Pedro merecesse perder a cabeça, afinal ele perdeu tudo menos o exílio em Paris (Ah Paris!), mas também em tempo a história oficial trataria os militares com heroicos brados pela deposição da tradição decadente em nome da moderna República Brasileira. Antes de ir, o último imperador dos nambiquaras deu um presente imortal à filhinha preferida e encomendou a redenção ao pai, na forma de uma extraordinária pintura do momento da Independência.

Princesa Isabel, 1910

Para a filha mais velha, pseudo-sucessora - uma vez que sabia que ela não poderia herdar o trono, escutando perto a percussão dos militares republicanos - Pedro II deu a assinatura do mais importante documento oficial da história brasileira: a Lei Áurea, em 1888. A princesa libertou os escravos e ganhou a eternidade, no nome que todos sabemos de cor, Isabel. Ela teve três irmãos, mas nenhum de nós que seja pobre mortal saberia de cor os seus nomes*. O dela sobreviverá séculos, Oh Isabel! Nas entrelinhas da história, o Brasil foi o último país das Américas a abolir a escravatura, pois ainda que o papai fosse um homem ilustrado, de ciência e filosofia, a elite branca (que continua por aqui) achava “um horror” abrir mão da mão de obra negra. O movimento abolicionista e a pressão dos países civilizados eram insuportáveis. O Imperador deu à filha o privilégio da imortalidade antes que fosse tarde demais. No ano seguinte, pai e filha partiram para o exílio. Nunca mais pisaram aqui. Isabel, princesa Isabel de Bragança e Bourbon e mais 7 nomes no meio.

Dom Pedro I
O presente para o falecido Pedro I, a redenção do pai pela história, foi encomendado pelo Segundo também no arrebol da Monarquia: a pintura “Independência ou Morte”, também conhecida como “Grito do Ipiranga”, finalizada em 1888 pelo consagrado artista Pedro Américo. Sofrendo a doença do Império, a degradação da moribunda Família Real Brasileira, restava salvar a memória do pai desnaturado. Aquele mesmo que o abandonou para nunca mais, retrato na parede, folhetim e novela. Para tal, foi escolhido o mais considerado artista brasileiro da época, um homem de muitas artes, o paraibano europeizado, lustrado lá fora, Pedro Américo de Figueiredo e Melo. Na ocasião, o pintor estava sorvendo Chiantis na Itália, transferindo paisagens da Toscana através dos pincéis. Não teve como recusar a encomenda. Recebeu a correspondência com os relatos oficiais, inspirou-se no Padre Belchior e produziu a épica cena de Pedro I e a comitiva no ato de libertar o Brasil: “independência ou Morte!” Uma tela dramática, cheia de movimentos, circulares enérgicos, o momento de construção da história. A arte faz a vida. Pedro I está lá, no meio, em destaque, conduzindo a espada ao céu e à imortalidade. Todos os livros de história do Brasil que se prezem trazem a imagem atrelada ao texto. O velho barbatanas tentava, antes de cair, de decair, salvar a imagem da família, como se num pedido de desculpas ao pai.

Independência ou Morte, Pedro Américo, 1888
Claro que muitos de nós, pobres historiadores, fazem questão de marcar todas as contradições do quadro, desde o caipira e a tropa do canto da imagem aos tropeços fundamentais da história oficial. Quebramos à talhadeira e pó de arquivo tudo que achamos mal contado por aí. Ossos e ossadas do ofício. Mas nada – nem você leitor, nem nós – vai conseguir apagar a imagem da memória coletiva. Nem mesmo a acusação de plágio de uma tela de Napoleão pintada 13 anos antes (1875). Ainda que a simples análise e comparação das pinturas possa deixar claro que coincidências demais são obras de milagres, há quem sempre dê suporte à honestidade e retidão do imenso pintor brasileiro. Afinal, ele se defendeu em vida das acusações e apresentou vários argumentos, inclusive o de ter estudado técnicas comuns de pintura na mesma academia de Beaux Arts de Paris. Segundo ele, só foi conhecer a tela acusadora anos depois da pintura do Ipiranga e, que mesmo assim, ela o faria lembrar de muitos outros quadros que adornam paredes nos museus da Europa. As influências mútuas os levaram pelo mesmo rio, ou melhor, pelo mesmo barranco. Missão pessoal, por favor, tire as próprias conclusões: “1807, Friedland”, de Ernest Messonier.

1807 Friedland, Ernest Messonier, 1875
Qualquer coisa que o contexto deixe escapar, a tela do Pedro Américo fundou o Brasil. Talvez, para ser justo e oficial, o fez ao lado de mais meia dúzia de pinturas, entre “A Primeira Missa”, de Victor Meirelles, e o “Abaporu”, de Tarsila do Amaral. Uma cena idealizada e encomendada, construída a partir de um mito que reformou e levou adiante, desenhada como o Brasil pelas ideias misturadas do quintal e do mundo. A pintura é retomada e mostrada a cada ano no 7 de setembro, é a imagem máxima da independência do Brasil e exemplo de como a história é escrita pelo poder. Para nós e para a história, independência ou morte!

por Homero Nunes


A Primeira Missa, Victor Meirelles, 1860
Abaporu, Tarsila do Amaral, 1928
*os nomes dos irmãos da princesa Isabel, os outros três filhos de Dom Pedro II eram: Afonso, Leopoldina e Pedro. Os dois meninos morreram na infância, levados por uma maldição dos Bragança, e deixaram a sucessão para Isabel. 

Coluna: Arte


Uma linha! O sintético Stanislaw Ponte Preta em frases curtas e largo humor

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Sérgio Porto (1923-1968) publicou sob um dos melhores pseudônimos já criados: Stanislaw Ponte Preta. Sonoro e misterioso, dava nome e sobrenome aos irônicos, sarcásticos, cínicos e muito bem humorados textos do jornalista. Capaz de dizer muito com poucas palavras, Ponte Preta se destacou pelo poder de síntese, em frases afiadas e incorretas. Criou personagens folclóricos no jornalismo brasileiro, como a Tia Zulmira, uma velhinha careta e saliente, que apontava o dedo para as “modernidades” da vida e soltava tiradas filosóficas sobre o cotidiano. Mas o mais destacado dos personagens foi ele mesmo, o “Lalau”, que de tão conhecido chegou a ser tratado pelo apelido.











Os personagens: Stanislaw Ponte Preta, Tia Zulmira, Bonifácio, Rosamundo e Altamirando.



Stanislaw Ponte Preta, Ipisis litteris, em uma linha:

"
Antes só do que muito acompanhado.

Hoje em dia ninguém é bonzinho de graça.

Desligou o telefone com uma violência de PM em serviço.

Ser imbecil é mais fácil.

Imbecil não tem tédio.

Ninguém se conforma de já ter sido.

Quem dá aos pobres e empresta, adeus!

Ficou numa melancolia de pinguim no Piauí.

Pra quem gosta de jiló, coruja é colibri.

O terceiro sexo já está quase em segundo.

Rabo e conselho só se deve dar a quem pede.

Mulher enigmática, às vezes é pouca gramática.

Se o Diabo entendesse de mulher, não tinha rabo nem chifre.

Dono de cartório de protesto é uma espécie de cafetão da desgraça alheia.

Há sujeitos tão inábeis que sua ausência preenche uma lacuna.

Tinha tal pavor de avião que se sentia mal só de ver uma aeromoça.

Uma feijoada só é realmente completa quando tem uma ambulância de plantão.

Os valores morais são os únicos que conservaram os preços de antigamente.

Ou restaure-se a moralidade ou locupletemo-nos todos!

Nem todo gordo é bom, muitos se fingem de bonzinhos porque sabem que correm menos.

Quando estamos fora, o Brasil dói na alma; quando estamos dentro, dói na pele.

Quando acabou aquele velório teve-se a impressão de que o morto ficou mais aliviado.

Macrobiótica é um regime alimentar para quem tem 77 anos e quer chegar aos 78.

Difícil dizer o que incomoda mais, se a inteligência ostensiva ou a burrice extravasante.

Se peito de moça fosse buzina, ninguém dormia nos arredores daquela praça.

Era desses caras que cruzam cabra com periscópio pra ver se conseguem um bode expiatório.

O marido enganado é um homem que se engana a respeito da mulher que o enganou.

Política tem esta desvantagem: de vez em quando o sujeito vai preso em nome da liberdade.

Às vezes, eu tenho a impressão de que meu anjo da guarda está gozando licença-prêmio.

Por mais eficaz que sejam os métodos novos de fazer criança, a turma jamais abandonara o antigo.

Se você não acredita que o reino do céu é aqui, repare então como os pobres de espírito se divertem.

Conversa de bêbado não tem dono.

Estava tão mal que mais parecia reserva do Bonsucesso.

Mais duro do que nádega de estátua.

Mais feio que mudança de pobre.

Mais monótono do que itinerário de elevador.

Mais por fora do que umbigo de vedete.

Mais inútil do que um vice-presidente.

Mais inchada do que cabeça de botafoguense.

Mais suado do que o marcador de Pelé.

Mais mole que bochecha de velha.

Mais murcho do que boca de velha.

Mais assanhado do que bode velho no cercado das cabritas

Mais vale um filé no prato do que um boi no açougue.
"

Referências:


Renato Sérgio. Dupla Exposição: Stanislaw Sérgio Ponte Porto Preta. Rio de Janeiro: Ediouro, 1998. 368 páginas.
Biografia





PORTO, Sérgio. O Melhor de Stanislaw Ponte Preta. José Olimpio Ed., 2011. Organizado por Valdemar Cavalcanti, com ilustrações de Jaguar. 228 págs.
Seleção de crônicas




Bibliografia do autor:
Como Stanislaw Ponte Preta
Tia Zulmira e Eu (1961)
Primo Altamirando e Elas (1962)
Rosamundo e os Outros (1963)
Garoto Linha Dura (1964)
FEBEAPÁ1 (Primeiro Festival de Besteira que Assola o País) (1966)
FEBEAPÁ2 (Segundo Festival de Besteira que Assola o País) (1967)
Na Terra do Crioulo Doido - A Máquina de Fazer Doido (1968)
FEBEAPÁ3 (1968)

Como Sérgio Porto
A Casa Demolida (1963)
As Cariocas (1967)
A velhinha contrabandista (1967)



Em 1966, os diretores Fernando de Barros, Walter Hugo Khouri e Roberto Santos adaptaram “As Cariocas” para o cinema. Com Norma Bengell, Lilian Lemmertz, José Lewgoy no elenco.


Em 2010, a Rede Globo produziu a série “As Cariocas”, dirigida por Daniel Filho e encenada por uma penca de atores globais.









O emplastro Bás Cubas e a borboleta preta que devia ter nascido azul

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“No dia seguinte, como eu estivesse a preparar-me para descer, entrou no meu quarto uma borboleta, tão negra como a outra, e muito maior do que ela. Lembrou-me o caso da véspera, e ri-me; entrei logo a pensar na filha de Dona Eusébia, no susto que tivera, e na dignidade que, apesar dele, soube conservar. A borboleta, depois de esvoaçar muito em torno de mim, pousou-me na testa. Sacudi-a, ela foi pousar na vidraça; e, porque eu sacudisse de novo, saiu dali e veio parar em cima de um velho retrato de meu pai. Era negra como a noite. O gesto brando com que, uma vez posta, começou a mover as asas, tinha um certo ar escarninho, que me aborreceu muito. Dei de ombros, saí do quarto; mas tornando lá, minutos depois, e achando-a ainda no mesmo lugar, senti um repelão dos nervos, lancei mão de uma toalha, bati-lhe e ela caiu.

Não caiu morta; ainda torcia o corpo e movia as farpinhas da cabeça. Apiedei-me; tomei-a na palma da mão e fui depô-la no peitoril da janela. Era tarde; a infeliz expirou dentro de alguns segundos. Fiquei um pouco aborrecido, incomodado.

-- Também por que diabo não era ela azul? disse eu comigo.

E esta reflexão, -- uma das mais profundas que se tem feito, desde a invenção das borboletas,-- me consolou do malefício, e me reconciliou comigo mesmo. Deixei-me estar a contemplar o cadáver, com alguma simpatia, confesso. Imaginei que ela saíra do mato, almoçada e feliz. A manhã era linda. Veio por ali fora, modesta e negra, espairecendo as suas borboletices, sob a vasta cúpula de um céu azul, que é sempre azul, para todas as asas. Passa pela minha janela, entra e dá comigo. Suponho que nunca teria visto um homem; não sabia, portanto, o que era o homem; descreveu infinitas voltas em torno do meu corpo, e viu que me movia, que tinha olhos, braços, pernas, um ar divino, uma estatura colossal. Então disse consigo: «Este é provavelmente o inventor das borboletas». A ideia subjugou-a, aterrou-a; mas o medo, que é também sugestivo, insinuou-lhe que o melhor modo de agradar ao seu criador era beijá-lo na testa, e beijou-me na testa. Quando enxotada por mim, foi pousar na vidraça, viu dali o retrato de meu pai, e não é impossível que descobrisse meia verdade, a saber, que estava ali o pai do inventor das borboletas, e voou a pedir-lhe misericórdia.

Pois um golpe de toalha rematou a aventura. Não lhe valeu a imensidade azul, nem a alegria das flores, nem a pompa das folhas verdes, contra uma toalha de rosto, dois palmos de linho cru. Vejam como é bom ser superior às borboletas! Porque, é justo dizê-lo, se ela fosse azul, ou cor de laranja, não teria mais segura a vida; não era impossível que eu a atravessasse com um alfinete, para recreio dos olhos. Não era. Esta última ideia restituiu-me a consolação; uni o dedo grande ao polegar, despedi um piparote e o cadáver caiu no jardim. Era tempo; aí vinham já as próvidas formigas... Não, volto à primeira ideia; creio que para ela era melhor ter nascido azul.”

Machado de Assis
Memórias Póstumas de Brás Cubas

Cap. XXXI – A Borboleta Preta


Rock pinel: meia dúzia dos personagens mais malucos da história do rock

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Keith Richards
Inacreditável como Richards chegou aos 71. Rock demais nas veias do sujeito, drogas e sexo, fumante e alcoólatra. 51 anos de Rolling Stones. Casa na Jamaica, na Riviera Francesa, Londres. Os dedos deformados pela guitarra, manchados de tabaco, cheios de anéis. Magro, enrugado, dentes ruins. Bluesman branco, para contrariar a regra. Deve ter vendido a alma na encruzilhada. Sobrevivente. It's only rock 'n roll, but I like it.



David Bowie
Cores diferentes nos olhos, cabelos e na música. Um alienígena andrógino. Astronauta perdido no espaço. Personagem de ficção científica, mutante. Décadas de transformações visuais e sonoras, um empirista, experimentador da música. Tocou com quase todo mundo desta listinha, exceto Raul Seixas. Rock, pop, eletro, tudo. Maluco esquisitão no passado, agora foi abduzido e transformado num tiozinho bonitão, charmoso, derretedor de corações, careta até. No fundo ainda é o Ziggy Stardust.



George Harrison
Foi para a Índia e entrou numas de natureba, ayurvédico, citara. Ácido lisérgico demais, Lucy in the Sky with Diamonds. Levou os Beatlesà psicodelia, desencaretou a turma. Deixaram cabelos e barbas crescerem. Contracultura, roupas coloridas e som muito louco, bicho. Harrison foi o boa praça dos Beatles, paz e amor, doidão. Correu por fora na banda, contornando Lennon e McCartney, com composições eternas: while my guitar gently weeps.



Freddie Mercury
Gay. Bigodão, roupas coladinhas, dentes tortos. Voz espetacular. Compositor, pianista, artista. Presença de palco única. Insano. Não podia ter banda melhor: Queen. Emplacou a banda como uma das maiores da história do rock, para sempre. Emocionou multidões com baladas de cantar junto, de coro de plateia, isqueiros acesos. Hinos do rock que o povo canta até hoje. Love of my life, can't you see?



Jim Morrison
Teatral, levou a representação para os palcos. Intelectual, poeta, artista. Leitor de filosofia, Rimbaud, Baudelaire. Desregrado, não teve limites no comportamento e na música, nem na vida. Transformava seus shows em rituais do rock, celebrações pagãs, ele próprio o xamã. Morreu cedo, aos 27, levado pela maldição de Robert Johnson. Overdose na banheira, em Paris. É o túmulo mais visitado do cemitério Pére Lachaise. This is the end... My only friend, the end.



Raul Seixas
Entre o baião e Elvis, Rauzito inventou o rock brasileiro. Debochado, irreverente, maluco beleza. Sujeito inteligente, compôs músicas e personagens, tipo ideal de roqueiro doidão no Brasil. É, sem exagero, o músico mais pedido do mundo... até no show do Paul McCartney eu vi um sujeito segurando um cartaz escrito: toca Raul! Teve um monte de mulheres, abusou das drogas e ganhou a cirrose do álcool. Copos e cinzeiros estavam sempre no caminho. Também a criatividade, a veia contestadora, o talento que lhe fez uma metamorfose ambulante. Toca Raul!



PS.: e antes que alguém questione, o Frank Zappa é Hors Concours. Nem compete numa listinha destas.

Coluna Meia Dúzia, listinhas


Sui Generis: meia dúzia de figuras únicas da história do rock

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Keith Richards
Inacreditável como Richards chegou aos 71. Rock demais nas veias do sujeito, drogas e sexo, fumante e alcoólatra. 51 anos de Rolling Stones. Casa na Jamaica, na Riviera Francesa, Londres. Os dedos deformados pela guitarra, manchados de tabaco, cheios de anéis. Magro, enrugado, dentes ruins. Bluesman branco, para contrariar a regra. Deve ter vendido a alma na encruzilhada. Sobrevivente. It's only rock 'n roll, but I like it.



David Bowie
Cores diferentes nos olhos, cabelos e na música. Um alienígena andrógino. Astronauta perdido no espaço. Personagem de ficção científica, mutante. Décadas de transformações visuais e sonoras, um empirista, experimentador da música. Tocou com quase todo mundo desta listinha, exceto Raul Seixas. Rock, pop, eletro, tudo. Foi abduzido e transformado num tiozinho bonitão, charmoso, derretedor de corações, careta até. No fundo ainda é o Ziggy Stardust.



George Harrison
Foi para a Índia e entrou numas de natureba, ayurvédico, citara. Ácido lisérgico demais, Lucy in the Sky with Diamonds. Levou os Beatles à psicodelia, desencaretou a turma. Deixaram cabelos e barbas crescerem. Contracultura, roupas coloridas e som muito louco, bicho. Harrison foi o boa praça dos Beatles, paz e amor, encantado. Correu por fora na banda, contornando Lennon e McCartney com composições eternas: while my guitar gently weeps.



Freddie Mercury
Gay power. Bigodão, roupas coladinhas, dentes tortos. Voz espetacular. Compositor, pianista, artista. Presença de palco única. Não podia ter banda melhor: Queen. Emplacou a banda como uma das maiores da história do rock, para sempre. Emocionou multidões com baladas de cantar junto, de coro de plateia, isqueiros acesos. Hinos do rock que o povo canta até hoje. Love of my life, can't you see?



Jim Morrison
Teatral, levou a representação para a música. Intelectual, poeta, artista. Leitor de filosofia, Rimbaud, Baudelaire. Desregrado, não teve limites no comportamento e na música, nem na vida. Transformava seus shows em rituais do rock, celebrações pagãs, ele próprio o xamã. Morreu cedo, aos 27, levado pela maldição de Robert Johnson. Overdose na banheira, em Paris. É o túmulo mais visitado do cemitério Pére Lachaise. This is the end... My only friend, the end.



Raul Seixas
Entre o baião e Elvis, Rauzito inventou o rock brasileiro. Debochado, irreverente, maluco beleza. Sujeito inteligente, compôs músicas e personagens, tipo ideal de roqueiro doidão no Brasil. É, sem exagero, o músico mais pedido do mundo... até no show do Paul McCartney eu vi um sujeito segurando um cartaz escrito: toca Raul! Teve um monte de mulheres, abusou das drogas e ganhou a cirrose do álcool. Copos e cinzeiros estavam sempre no caminho. Também a criatividade, a veia contestadora, o talento que lhe fez uma metamorfose ambulante. Toca Raul!



PS.: e antes que alguém questione, o Frank Zappa é Hors Concours. Nem compete numa listinha destas.

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Rodrigo Andrade: o sombrio abstrato e a matéria da arte

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por Juliano Mignacca

Ao entrar em contato com as obras do artista Rodrigo Andrade expostas no térreo da Galeria Millan em São Paulo, o visitante vai se deparar com uma natureza sombria e hostil. As cores verde escuro, marrom e preto dão um aspecto denso nas telas, o que deve ter sido o temperamento desse pintor para a exposição.

A certa distância, nota-se que as camadas maciças de tinta criam as formas da natureza. A imagem nas telas não resulta da representação do desenho e cor simplesmente. Há o elemento extra: a materialidade da tinta. 


Quando se aproxima, as pinceladas desvendam uma natureza tocada e revirada. Nos remete algo lúdico como apertar o barro com os dedos, o lodo das pedras para então limpar as mãos no rio e esfregá-las em árvores. Essas massas grossas de tinta criam um realismo a qualquer distância em que se contempla as telas. E o que triunfa nessa experiência, é o olhar do espectador. 

Embora o cinza, azul e branco atenuem a tensão das cores mais fortes, é perturbador o poder da natureza em seu estado de revolta na exposição intitulada Pinturas de onda, mato e ruína.

                              
                     
No primeiro andar a série Bicromias continua explorando a poética da natureza, mas não meramente como tema, e sim, numa nova ideia, uma outra criação. Como o próprio nome sugere: Bicromias são telas com duas cores, e nessas também imperam as espessas camadas que produzem a ilusão em terceira dimensão.


Rodrigo Andrade é da geração de artistas dos anos de 1980. Começou ganhar visibilidade quando ele e outros colegas montaram um ateliê em uma vilazinha no bairro Cerqueira César em São Paulo. Essa turma ficou conhecida como o grupo da Casa 7. Ali reuniam pintores com objetivos estéticos parecidos, influenciados pelo neoexpressionismo Alemão e o expressionismo abstrato dos Estados Unidos:  Carlito Carvalhosa (1961), Fábio Miguez (1962), Paulo Monteiro (1961), Rodrigo Andrade (1962) e Nuno Ramos (1960).

O tempo fez questão de provar que todos tinham talento. Ganharam prêmios, fizeram várias exposições, participaram de bienais e naturalmente receberam os louros desse reconhecimento.


Rodrigo Andrade percorreu por experiências figurativas, do abstrato ao gestual, até atingir uma de suas principais marcas no final dos anos de 1990 quando telas pintadas em branco ganhavam massas coloridas em formas circulares e retangulares de uma relação cromática entre si bastante curiosa.

Na 29ª Bienal de São Paulo em 2010, Rodrigo expôs Matéria Noturna, que flerta com a antítese dos contrastes de escuridão e a luz artificial de lâmpadas, postes e faróis. Naturalmente com grandes camadas de tinta preta que deu nome à série. 


Em 2013 as telas que fizeram o conjunto da exposição Pinturas de Estrada, no Centro Universitário Maria Antonia, receberam luz natural diurnas. São imagens pintadas através dos enquadramentos fotográficos que ele realizou durante viagens.



A individual na galeria Millan comprova que a investigação plástica de Rodrigo Andrade é incessante, mesmo após mais de três décadas. Isso certamente diferencia o artista do pintor.

por Juliano Mignacca

Coluna: Arte


Hectoplasma! Meia dúzia de filmes assombrados por aparições e fantasmas

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Os Caça-Fantasmas
Ghostbusters, 1984
Dir. Ivan Reitman
Com Bill Murray, Dan Aykroyd, Sigourney Weaver


O Iluminado
The Shining, 1980
Dir. Stanley Kubrick
Adaptado do livro de Stephen King
Com Jack Nicholson


Os Outros
The Others, 2001
Dir. Alejandro Amenábar
Com Nicole Kidman


O Sexto Sentido
The Sixth Sense, 1999
Dir. M Night Shyamalan
Com Bruce Willis


Poltergeist, o fenômeno
Poltergeist, 1982
Dir. Tobe Hooper
Escrito e produzido por Steven Spielberg


Os Fantasmas se Divertem
Beetlejuice, 1988
Dir. Tim Burton

Com Michael Keaton, Geena Davis, Winona Ryder




Søren Kierkegaard e o caos dentro do coração

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por Homero Nunes

Copenhague é a cidade das bicicletas, da civilização, de Søren Kierkegaard. Lugar da liberdade individual, reino da organização, asséptica. Ética protestante. Também comporta o caos dentro de si, na cidade livre de Christiania, comuna independente ocupada em área invadida desde os anos 60. Os hippies e anarquistas românticos conseguiram criar no coração do cosmos o reduto do caos. Contradição em forma de ilha. Algo de estranho no reino da Dinamarca.

Estranho também é logo ali ter nascido o existencialismo, ainda na primeira metade do século XIX, muito antes de Christiania. Do frio báltico, brotaram as ideias que trariam a angústia, a crise, a desilusão de gerações. Kierkegaard foi o primeiro dos existencialistas, colocando a angústia no centro da filosofia: O Desespero Humano.

Sartre, Heidegger, Husserl e todo o pensamento humanista do século XX deveriam vislumbres a Kierkegaard. Um menino sufocado pelo pai luterano, negociante rico, pessoa séria, sem diversões, sem brechas a tentações mundanas. Queria que o filho fosse comerciante, que levasse adiante os negócios da família. O “espírito do capitalismo” era sinal da predestinação, da salvação da alma e da família, a prova do caráter pelo trabalho árduo. Sem escusas. Na escola deveria ser sempre o terceiro da classe, para não deixar a vaidade aflorar, para não chamar atenção. A inteligência maior, a aptidão para o conhecimento, a aprendizagem fácil não era desculpa para a soberba. Devia errar de propósito para ser o terceiro da turma, nem o segundo servia. Na juventude foi mandado à viagem, em missões comerciais de grande responsabilidade, para aprender a negar o ócio, o negócio. Portos e docas, estivas e galpões empoeirados. Gentes rudes, paus mandados, burgueses ambiciosos, senhores de olhos de vidro e os donos do mundo. Devia conhecer a todos, sentir a dureza da vida para ser capaz de assumir a cadeira quando lhe faltasse o pai. Única dimensão da vida, a responsabilidade.

Kierkegaard por Athamos Stradis 2013


Mas queria “o grande Manitou dissimulado atrás do destino” que o jovem Søren guardasse o caos dentro de si, em seu coração. Com a morte do pai, a queda do totem, viu-se riquíssimo em um mundo de liberdade. Tabernas, bordéis, álcool, mulheres más. Pior, tinha agora o pensamento livre. Não mais era obrigado aos números e tabelas, aos livros-caixa, nada. De madrugadas em dias, Kierkegaard correu solto na fase estética da vida, sorvendo prazeres objetivos, tratando tudo como meio de si, todos como coisas. Estético, voltado para fora, hedonista no verão da juventude. Enfim, apaixonou-se: Regine.

Moça de família, respeito puro, cheia de amarras morais, protestante também. Linda, em forma e jeito, educada para a eternidade do compromisso. Ele lhe caiu aos pés, aos braços dados no passeio público. Tiveram uma relação à moda antiga, sem carne, muita sedução em longos diálogos. Dias felizes demais para quem tinha o caos no coração, insuportáveis. A felicidade se tornou angústia, o jovem Søren viajando agora dentro de si, buscando construir a si mesmo, iniciando a fase ética da vida. Delirou que aquilo tudo era fachada demais, que ele não era merecedor de Regine, que a usava como coisa, reificando a relação de amor. Deu à melancolia, em dias sombrios, gelados como o inverno báltico. Por fim jogou tudo ao vento, deixou-a em prantos, em decepção traumática quando desfez o noivado sem explicações. Não era nada com ela, dizia, era ele mesmo o culpado de tudo. Desculpa fatal, ainda hoje bastante usada, descrita no livro que tentou explicar: O Diário de um Sedutor. Nele, autoflagelava-se em melancolia e desespero ao dizer que o dever era maior que ele, que precisava fazer a coisa certa a qualquer custo, inclusive o sacrifício de si. Tentando ser ético, buscando o autoconhecimento, encontrou o monstro interno, o caos que habitava o coração. Não era digno de Regine, a fina flor do sentimento mais elevado do universo. Precisava sofrer tudo, talvez o suicídio, para purificar os princípios que o guiavam, racionalmente, filosoficamente.

Mas a razão não era suficiente para acalmar a alma, caiu em desespero. O desespero mais puro, aquilo que todos os homens têm em comum um dia na vida, o desespero humano, doença mortal. Pensamentos cortantes, pulsos, gargantas, cordas, alturas, venenos e o éter. Confiava à racionalidade a resposta que precisava, segurava-se à razão como âncora, firmeza colossal desde Platão, desde Sócrates. Mas continuava afundando, conhecer a si mesmo era enfrentar o abismo. A ironia socrática era demasiado cruel naquele momento. Dilacerado em desespero.

Enfim, deu “um salto no escuro”, além da razão, muito além do estético ou do ético, na religião. Fé cega, faca amolada. Cortou a angústia em pedaços, arrefeceu o coração, dominou o caos no salto irracional para o cosmos. Deus foi quem salvou Kierkegaard do desespero. O remédio para as angústias, a metadona, o que Marx chamaria em anos próximos de “o ópio do povo”.

O existencialismo cristão de Kierkegaard seria adiante refutado pelos ateus do existencialismo francês, mas como angústia do próprio pensamento existencial. Um desespero que todos teriam, mas sem a saída do cristianismo. De qualquer forma, Søren Kierkegaard deixaria a fase ética martelando em todas as cabeças, a responsabilidade na construção de si, a condenação da liberdade... ao ponto que Albert Camus um dia afirmou que “a única questão verdadeiramente filosófica é o suicídio”. Na poética de Shakespeare: “ser ou não ser, eis a questão”.



Na Copenhague secular, as torres únicas das igrejas protestantes ainda se erguem sobre o horizonte de prédios históricos da época de Kierkegaard, o inverno rigoroso ainda esfria as relações e a cerveja, a ética protestante configura como nunca o “espírito do capitalismo”, mas o caos ainda habita o coração da cidade, em Christiania. Muitas angústias na vidinha, muitas crises existenciais na metrópole, muito controle social e tudo certinho demais, todo mundo atravessando na faixa. Mas o caos está a ruas de distância de casa, em hippies fugidos de Woodstock, anarquistas românticos de histórias em quadrinhos, hortas comunitárias, sem polícia, sem leis, tudo ao léu. Crises existenciais resolvidas com escolhas livres. Ou sexo, drogas e rock n’ roll. Ou zen budismo. Ou em fazer o que se quer, a qualquer hora. Existencialismo puro no humanismo hippie: cada um que construa a si mesmo, enfrentando o caos de dentro, eticamente. Todos condenados à liberdade, bicho. Logo na entrada está a famosa placa: “você está deixando a União Europeia – Bem-vindos à cidade livre de Christiania”.


De Kierkegaard, compensa:
O Desespero Humano, 1849
O Conceito de Angústia, 1844
Temor e Tremor, 1843
O Diário de um Sedutor, 1843



Kind of Blue e o tempo que perdi sem escutar Miles Davis

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por Homero Nunes


Kind of Blue, de Miles Davis é o disco de jazz mais vendido no mundo. Em 2009 o LP completou 50 anos e por isso algumas publicações a respeito começaram a aparecer na minha frente. Por vezes resisti à leitura, mas acabei me entregando ao título da matéria: “a trilha sonora do céu”. Nem sei quem escreveu aquilo, mas ecoava a efeméride do disco ao parafrasear o New York Times, de 1959, ano do lançamento. Os adjetivos eram: gênio, transformador, fundamental, histórico, clássico, definitivo. Afinal, o que cargas d’água tinha aquele disco para ser tão importante?


Garimpei o vinil na internet. Alguém dizia que a versão Mono era melhor que a Stereo, outro dizia que não. Enfim, encontrei uma edição comemorativa dos 50 anos, com as duas versões, em vinil de 180 gramas. Caro, especial o álbum. Assim, em vinis de grande gramatura, Mono e Stereo, fui apresentado ao gênio de Miles Davis.

Miles Davis, por Anton Corbijn, 1985
Poutz! Atrasado, defasado, conheci tardiamente o trompete de Miles Davis. Não pude acreditar em quanto tempo eu perdi sem escutar aquele som. Tardiamente fui entender o que era o jazz, além da música lenta tocada no elevador. Não, não era coisa de pedantes e de gente sofisticada. Era um tipo de tristeza, linda, a kind of blue.

O disco foi um marco na história do jazz pela simplicidade, honestidade, sem muitos recursos, com grandes músicos tocando música boa, gravada com qualidade. Apenas saxofone, baixo, piano, bateria e o trompete de Miles Davis. Mais que isso foi a criatividade, a fusão de ritmos, a reinvenção do jazz, o auge da música negra americana, “a trilha sonora do céu”.

Miles Davis era o gênio por trás de tudo, inovador, revolucionário, um arquiteto da música, um criador. Aberto a influências múltiplas, fusões sonoras, experimentações, rompimentos, quebraduras, modalidade. Escolheu a dedo os músicos do disco: John Coltrane, Julian "Cannonball" Adderley, Bill Evans, Paul Chambers, Wynton Kelly e Jimmy Cobb. E com eles gravou o melhor disco de jazz da história.


Kind Of Blue
Columbia Records, 1959
Gravado em duas sessões, em 2 de Março e 22 de Abril de 1959
no 30th Street Studio em Nova York.

Compensa o mini-documentário:
Celebrating a Masterpiece: Kind of Blue
por Michael Cuscuna, 2009



Coluna: Música


Brasil, o país do futuro, descrito em frases incorretas e canibais

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"Só a antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente.
Única lei do mundo. 
Expressão mascarada de todos os individualismos, de todos os coletivismos. 
De todas as religiões. De todos os tratados de paz.
Tupi, or not tupi that is the question.
Contra todas as catequeses. E contra a mãe dos Gracos.
Só me interessa o que não é meu. Lei do homem. Lei do antropófago."

Oswald de Andrade
Manifesto Antropófago, 1928


O escritor Stefan Zweig suicidou-se no Brasil. Ironicamente ele, que deu ao país o apelido pegado e repetido de “país do futuro”, matou-se aqui. Não teve paciência de esperar. Talvez fosse demorar demais. Imigrante judeu, Zweig veio ao Brasil por causa da guerra e por esperança de um futuro distante. Uma miragem. Publicou o seu livro como um elogio, engrandecendo a terra que o acolheu, mas nas garras do destino o título ficou como uma maldição, como um tempo a nunca chegar, um apelido: “Brasil, País do Futuro”.

O título-apelido de Zweig talvez seja a melhor definição de Brasil, mas selecionamos aqui algumas frases para ajudar a descrever o país:

“Brasil, o país do faturo”
Millôr Fernandes

“O Brasil não é para principiantes.”
Tom Jobim

“Talvez o Brasil já tenha acabado e a gente não tenha se dado conta disso.”
Paulo Francis

“Acho que a história do Brasil é um romance sem heróis.”
Raymundo Faoro

“O Brasil, último país a acabar com a escravidão, tem uma perversidade intrínseca na sua herança, que torna a nossa classe dominante enferma de desigualdade, de descaso.”
Darcy Ribeiro

“A prosperidade de alguns homens públicos do Brasil é uma prova evidente de que eles vêm lutando pelo progresso do nosso subdesenvolvimento.”
Stanislaw Ponte Preta

"O Brasil é realmente muito amplo e luxuoso. O serviço é que é péssimo."
Millôr Fernandes

“No Brasil é assim: quando um pobre rouba, vai para a cadeia, mas quando um rico rouba ele vira ministro."
Luiz Inácio Lula da Silva, em 1988, antes de chegar ao poder, nomear ministros e pagar língua.

“Este é um país em que as prostitutas gozam, os traficantes cheiram e em que um carro usado vale mais que um carro novo. É ou não é um país de cabeça para baixo?”
Tom Jobim

“O Brasil é o único Pais em que além de puta gozar, cafetão sentir ciúmes e traficante ser viciado, o pobre é de direita.”
Tim Maia, acrescentando à frase de Tom Jobim

“Não reparem que eu misture os tratamentos de "tu"e "você". Não acredito em brasileiro sem erro de concordância."
Nelson Rodrigues

"Se o Brasil tinha de produzir alguma coisa organizada, precisava ser logo o crime?"
Ruy Castro

“O Brasil é um país que não perde uma boa oportunidade de perder uma boa oportunidade.”
Roberto Campos (Bob Fields)

“No Brasil a burrice tem um passado glorioso e um futuro promissor.”
Roberto Campos (Bob Fields)

“No Brasil não existe filantropia, o que existe é pilantropia.”
Hebert de Souza, o Betinho

“O Brasil é feito por nós. Só falta agora, desatar os nós."
Barão de Itararé, Aparício Torelli

“Minha obra toda badala assim: Brasileiros, chegou a hora de realizar o Brasil.”
Mário de Andrade

“O mais importante é inventar o Brasil que nós queremos.”
Darcy Ribeiro



Damien Hirst e a arte de fazer milhões com a arte

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por Juliano Mignacca

Odiado e adorado pela crítica. Com esse antagonismo, o inglês Damien Hirst se tornou celebridade e o artista visual mais rico do mundo.
Pela primeira vez no Brasil, Hirst apresenta uma mostra individual na galeria White Cube em São Paulo.


A exposição conta com trabalhos inéditos intitulados Black Scalpel Cityscapes (Negras Paisagens Urbanas com Bisturis). São reproduções aéreas de cidades ao redor do mundo feitas com laminas de barbear, alfinetes, zíper, instrumentos cirúrgicos entre outros. As paredes da galeria apresentam 17 telas de fundo preto revestidas desse material prateado. Por abordar somente essa combinação, é repetitivo, mas proporciona uma estranheza no ambiente.


Nesse trabalho, Hirst evoca conflitos permanentes da realidade contemporânea; a globalização, vigilância das cidades, crescimento urbano e preocupação militar com a segurança. Porém as obras permitem outras leituras. As formas e volumes de cada uma das telas lembram tendências e períodos da história da arte moderna. Abstração na poluição visual de Singapura, a geometria calculada de Washington, a sinuosidade de São Francisco, a deformidade angular no caos de São Paulo.

Singapura
Washington
São Francisco
São Paulo
Damien Hirst faz parte de uma geração de artistas que ganhou notoriedade no final dos anos de 1980. A maioria deles, Sarah Lucas, Ian Davenport, Michael Landy, Gary Hume, entre outros, cursou na Goldsmiths College em Londres onde tiveram contato com diferentes mídias uma vez que a escola havia abolido a divisão dos departamentos artísticos (escultura, pintura, cerâmica, impressão, etc). Isso contribuiu para encorajá-los a criar várias experiências com arte.

Esses artistas britânicos cresceram durante os anos de recessão de Margaret Thatcher e surgiram para o cenário nacional durante o governo de John Major. Foram tempos difíceis marcados por uma queda enorme na economia e no desemprego. Muitas galerias fecharam as portas e obras ficavam empilhadas. O momento era de investir em artistas jovens com preços mais acessíveis. A arte que surgiria desse contexto expressava a realidade presente nos meios de comunicação em massa. Eram temas que variavam entre sexo, drogas, abuso, pornografia e crime, cuja linguagem, alcançava o entendimento da maioria.

A turma da Goldsmiths, da esquerda para direita: Ian Davenport, Damien Hirst, Angela Bulloch, Fiona Rae, Stephen Park, Anya Gallaccio, Sarah Lucas e Gary Hume, na inauguração da exposição Freeze, 1988.

Em 1988, os alunos da Goldesmith, começaram a expor em grandes galpões industriais. A primeira mostra se chamou Freeze, que certamente emplacou o mito da sigla YBA, Young British Artists (jovens artistas Britânicos)

Sem dúvida dois fatos ajudaram a pavimentar o sucesso desse grupo. O primeiro foi o interesse que essa arte despertou no publicitário Charles Saatchi, figura rica e famosa que atuava no cenário das artes colecionando obras de artistas renomados. Após visitar a Freeze, começou a investir nessa geração conseguindo preços espetaculares ao comprar tudo de uma vez só. As novas aquisições de Saatchi ganharam exposições em sua galeria. Foi numa dessas, em 1992, que Hirst apresentou um tubarão tigre dentro de um tanque cheio de formal com o titulo: The physical impossibility of death in the mind of someone living (A Impossibilidade física da morte na mente de alguém vivo).


Houve grande repercussão na mídia por se tratar de obras que iam contra o “Establishment do mundo das artes. O interesse aumentou tanto que em 1997, a coleção de Saatchi levou mais de 300 mil pessoas ao Royal Academy para ver a mostra chamada Sensation, que teve contribuição do consulado britânico para ser exibida em outros países.

O espectador encontrava sangue, cadáver, inseto, animal ou qualquer coisa que era o objeto em si, e não mera representação. Isso ganhava apelo muito maior do que a televisão, uma vez que as pessoas não esperam entrar numa galeria e serem entretidas com esse tipo de imagem.


Outro impulso veio da reformulação do Turner Prize, que é promovido pela Tate Gallery. É uma premiação anual para artistas britânicos por alguma exposição em particular ou contribuição no cenário da arte. Foi desenvolvido para ser eficiente na publicidade. O evento acontece ao vivo da Tate, transmitido e patrocinado pela emissora de televisão Channel Four (Canal Quatro). Em 1995, Hirst foi contemplado com os louros.

Expor corpos de animais em caixas de vidro é uma das marcas de Hirst. As esculturas retangulares de material industrial são consideradas por alguns críticos como minimalistas. Mas, como geralmente sugere uma interpretação, mesmo que oculta, perde a ideia central do minimalismo que busca erradicar qualquer mensagem.


Hisrt diz que muito da arte contemporânea depende do impacto que ela provoca. Segundo ele, o importante é tirar do espectador um “Uau”! Muitas pessoas são impelidas a essa reação quando se deparam com suas obras. É o caso de Mother and child, divided (1993), (Mãe e filho, divididos), ou simplesmente separados. Um trabalho intrigante que remete a conceitos cristãos. Vida e morte é assunto recorrente na obra de Hirst.

A instalação, A Thousand Years (1990), com insetos dentro de duas caixas de vidro e uma cabeça de vaca em decomposição também discorre sobre isso. Os insetos põem seus ovos que viram larvas para se tornarem insetos e então morrerem completando o ciclo da vida.


Alguns críticos veem suas obras como apelativas e oportunistas. Censuram o fato dele fazer trabalhos em série que muitas vezes são realizados pelos seus assistentes; tais como spot painting, que alcançou mais de trezentas unidades.

Talvez o repertório polêmico de Hirst vem se esgotando para atrair a mídia, ainda que espontânea ou planejada. Mas a cobiça do mercado para seus trabalhos mais recentes não parece se incomodar. Na abertura da exposição em São Paulo por exemplo, seis das 17 telas foram vendidas por 3,6 milhões de reais cada uma.


De qualquer maneira, mesmo criando réplicas e tendo suas obras executadas pelas mãos de seus assistentes, o que faz a arte de Damien Hirst interessante, é antes de tudo, a ideia.

por Juliano Mignacca

Coluna: Arte

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Fausto, Blues, Rock e a Maldição de Robert Johnson

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por Homero Nunes

Em uma encruzilhada empoeirada, nos anos 30, Robert Johnson vendeu a alma em troca do talento no Blues. Do trato com o Diabo, nos moldes do Fausto de Goethe, germinou a semente do rock e a maldição dos 27 anos.


“Prefiro o céu pelo clima e o inferno pela companhia.”
Mark Twain

Jimi Hendrix engasgado no próprio vômito, Janis Joplin no chão com o nariz quebrado e 4 dólares na mão, Jim Morrison na banheira e no Père-Lachaise, Brian Jones boiando na piscina, Kurt Cobain estourando os miolos, Amy Winehouse seguindo o esquema, afogada em álcool e drogas. Todos aos 27, a idade de Robert Johnson.

Isso só para citar os maiores e mais conhecidos, mas a lista dos talentos mortos aos 27 anos é imensa, com baixas nos Rolling Stones e mais um monte de bandas menores (todas as bandas são menores que os Stones; rasguem-se os puristas e tiete-maníacos). Uma maldição que recai sobre aqueles que ousam tocar os acordes negociados por Robert Johnson. Sem poção que a possa quebrar, uma vez que o músico fincou as bases do blues e inventou o som que deu origem ao rock n’ roll.


Daquele pacto, naquela encruzilhada do Mississippi, a criatividade se rendeu ao excesso e o Coisa-Ruim nunca mais parou de coletar as almas dos diabolicamente talentosos, aos 27, envenenados por álcool e drogas. A maldição de Robert Johnson.

“Quem sou eu? Parte da força que, empenhada no mal, o bem promove.”
Mefistófeles
Goethe. Fausto. 1808

Nascido na lama do Mississippi, 1911, filho da pobreza e de pai que abandona mãe, o jovem Robert Johnson aprendeu a mudar de padrasto, casa, cidade e de sobrevivência de tempos em tempos. Trabalhou cedo onde deu, fez de tudo um pouco. Antes de completar os 18, 1929, casou-se com o primeiro amor. Perdeu-a no parto do primeiro filho, morto. Um blue de cortar a vida.


Aprendeu a beber e a tocar gaita e viola com os velhos curtidos na tristeza, no blues. Deles herdou, da solidão, a capacidade de acompanhar a si mesmo, batendo os pés no chão, marcando o ritmo na caixa acústica do assoalho. Logo viu que ganhar a vida nos bares, perto das mulheres e do Bourbon, era menos doloroso que nos campos de algodão, que lhe feriam os dedos mais que as cordas dos instrumentos.

Casou-se de novo, mas, sem filhos, a abandonou no algodão no sentido do Delta do Mississippi, afundando-se na lama do blues. Já na foz, convivendo com bluezeiros de todas as margens do velho, longo e caudaloso rio, juntou-se à terceira mulher e adotou o esperado filho. Um dia também ele choraria os blues do pai, seguindo carreira na música.


Entre a família e as estradas, o sagrado e o profano, nos caminhos cruzados, Robert Johnson criou o mito dele mesmo. Marketing pessoal, diriam os malditos consultores e treinadores de carreiras. Com músicas como “Me and the Devil”“Crossroad Blues” e “Hellhound on my Trail”, ele dizia que o Diabo andava ao seu lado, que batia na mulher sem motivos, exaltava a encruzilhada e pedia perdão a Deus, chutava o cão do inferno no seu caminho. Mais ainda, tocava pelo penhor da alma. Blues tão bons que só o sobrenatural podia explicar: era o diabo!

“Please allow me to introduce myself
I'm a man of wealth and taste
I've been around for a long, long years
Stole many a man's soul and Faith...”
Rolling Stones. Sympathy for the Devil. 1968

Com uma gota de sangue, num papel qualquer, desde o Fausto de Goethe, o Diabo sela o contrato. Dá o êxtase da vida em troca da danação da alma. Prazeres mundanos, vaidade, luxúria, inteligência e talento. Na concorrência com Deus, promete tirar os obstáculos, pavimentar os caminhos, criar oportunidades, corrigir a sorte. Há muito no ofício de penhorar almas e roubar a fé, o Coisa-Ruim tem predileção pelos artistas, poetas malditos e músicos geniais. Gosta mesmo da boa música, da gula das boas comidas, das mulheres más, do cigarrinho do Capeta, da água que passarinho não bebe, dos espíritos soltos e das ideias contestadoras, enfim, de tudo aquilo que faz desse mundo um lugar mais divertido e interessante. Também o saber das coisas, o fogo roubado do Olimpo, os frutos proibidos do conhecimento, a filosofia filha da dúvida e aquilo que a razão afirma em detrimento da fé, a ciência. O Capiroto é das coisas finas, sujeito de riqueza e gosto.


Não fosse assim, só com rezas, terços e ladainhas, o mundo seria mesmo o tal vale de lágrimas. Contudo, demorou muito para o Demônio amadurecer no caminho do rock. Famoso por ser o primeiro revolucionário a lutar contra o sistema, por tentar Jesus no deserto, assombrar a Idade Média, criar a mais-valia e os impostos retidos no contracheque, o Canhoto só começaria a cair nas graças da juventude transviada ao promover a trilha sonora mais quente do século XX.

Justiça seja feita, também o doutor Fausto já o tinha lançado nos braços do romantismo, nas flores de Baudelaire, nos abismos de Nietzsche; contudo, Mefistófeles só seria o astro da cultura pop com o advento do rádio, do LP, do Walkman, do Ipod. Da mídia. O pulo do gato, ou melhor, o avanço do cão foi quando ele investiu em Robert Johnson, na atitude, no visual, na rebeldia, no rock n' roll!


“Entendamo-nos bem. Não ponho eu mira
na posse do que o mundo alcunha gozos.
O que preciso e quero é atordoar-me.”
Dr. Fausto
Goethe. Fausto. 1808.

O Diabo cumpriu sua parte no acordo e deu ao Mr. Johnson a genialidade do Blues. Da lama do Mississippi brotaram a lenda e as 29 músicas que transformaram Robert Johnson no “mais importante bluesman da história” (Clapton). 29 músicas gravadas. Em apenas duas sessões, 1936 e 37, gravou 41 faixas, repetindo 12 músicas. Em 1938 o Diabo cobrou sua dívida.


Aliás, sobre a cobrança da alma, dizia o Dr. Fausto (Goethe) que Lúcifer só pode pegar seu quinhão quando consegue elevar seu sócio à experiência mais sublime, ao momento que o embasbacado de tamanha satisfação queira parar o tempo. Assim foi.

Robert Johnson estava no auge, ganhando dinheiro, vivendo de música, aplausos e suspiros para o seu lado. Numa noite daquelas, num flerte com a mulher do dono do estabelecimento, o Diabo assoprou nos ouvidos do marido. Deu-lhe a visão, tirou-lhe a razão. O sujeito magoado, enraivecido, planejou o mal feito. O Coisa-Ruim encostado no canto, com aquele sorriso cínico no rosto, cigarro aceso e baforadas. O penhor veio na forma de uísque com estricnina, copo que Johnson bebeu com regalo. Há quem diga que foi avisado, mas confiou no Diabo. Morreu três dias depois, aos 27 anos, rebentando a maldição de Robert Johnson.

Muito talento, excessos, álcool e o veneno correndo no sangue. Sexo, drogas e rock n’ roll. Mas tudo a prazo, no crediário, em prestações eternas: "aproveita primeiro e paga depois, chefia". O lugar está marcado, a hospedagem garantida, o inferno é pessoal.


“Clapton is God”

Falou-se tanto aqui do outro que cabe uma pequena nota a Deus. Não se sabe como, mas Eric Clapton sobreviveu à maldição. Talvez o maior e mais famoso fã de Robert Johnson, Clapton continua vivo para contar a história. Gravou disco com as músicas do cara – “Me and Mr. Johnson” – fez shows dedicados a ele e lançou um ótimo filme com as “Sessions for Robert Johnson”. Em depoimento, reforçou a lenda dizendo que ele é “o mais importante músico de blues que já viveu”. Um elogio de “Deus” ao trabalho do Capeta. O Tinhoso deve ter ficado lisonjeado. Deve ser isso.

“O diabo é o pai do rock
Enquanto Freud explica
O diabo dá os toques”
Raul Seixas


Coluna: Música

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Charlie Hebdo e a intolerância de quem não entende a piada

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por Homero Nunes

Tem gente que se leva a sério demais. O ataque ao Charlie Hebdoé o exemplo extremo do comportamento de patrulha, de juiz, de guardião das ideologias e ideias prontas. Um comportamento que não suporta a controvérsia, que não respeita ideias contrárias, que aponta o dedo para desqualificar o oponente, imbuindo-se das melhores e mais divinas intenções.


Ironias, sarcasmos, humor, figuras de linguagem e contradições não são para compreensão geral. Tem gente que não entende as coisas, que se leva a sério demais. E pior, reage com ataques, ofensas e violência. Escondendo-se atrás da discordância, intolerantes se esquivam da argumentação, da discussão de ideias, da controvérsia intelectual e partem para o ataque, franco e direto, como se desqualificar o outro por si só já valesse para ganhar a luta. Talvez estejam mesmo ganhando.

O hebdomadário francês de humor, Charlie Hebdo, foi alvo de um ataque a tiros que matou 12 pessoas por ter publicado uma charge que satirizava o profeta Maomé. Homens mascarados, armados com Kalashnikovs, atiraram contra a redação para matar aqueles que ousaram fazer humor com aquilo que levam a sério. A sério demais. Um deboche num veículo incorreto que custou a vida 12 pessoas.


O Charlie Hebdo costuma tirar sarro de muita coisa, sobretudo política. Mas não deixa escapar o que está em pauta na mídia mundial. Qualquer coisa pode ser motivo de zombaria. Vira e mexe é processado por alguém que se sentiu ridicularizado ou humilhado por lá. A Santa Madre Igreja Católica Apostólica Romana, por exemplo, já desceu dos tamancos algumas vezes nos tribunais franceses. Contudo, nenhum cristão chegou atirando por causa das charges da Virgem, de Deus, pai, filho e espírito santo. Ainda. Isso é coisa de quem se leva mais a sério, como um escolhido para a missão de limpar o mundo de quem ri de si mesmo e das coisas da vida.


A Igreja mesmo já queimou vivo quem discordava dela. Na Idade Média, qualquer homem que pensasse diferente ou mulher que apenas pensasse podia ir para a fogueira. Mas o tempo passou: Renascimento, filosofia, ciência, progresso e civilização poliram a instituição na paz e na tolerância. Pelo menos um tanto. Hoje, há quem diga que o mundo islâmico ainda está em trevas medievais. Contudo, as trevas estão em toda parte, naqueles que não aceitam a diferença, que se colocam como defensores de ideias prontas. O problema é quando um deles pega um AK47 e sai fazendo sua justiça torta. Foi o que aconteceu em Paris.


Das origens nos anos 70, sumindo e aparecendo, o Charlieé publicado em Paris com periodicidade desde 1992. Com cartunistas importantes, a nata do desenho crítico de humor, costuma levar ao público o assunto do momento sob a acidez do deboche, de um humor muito incorreto. Controvérsias e debates são comuns e os editores apostam nas polêmicas como estratégia para elevar as vendas. Quem compra gosta de rir de coisas sérias e aumentar a carga crítica de suas opiniões. Um tabloide pra lá de incorreto.

Implacável, anárquico, as armas do Charlie Hebdo são os quadrinhos, as charges, os textos rápidos e corrosivos. A piada. Seja tragédia ou derrota, desgraça ou gafe, os traços da revista cairão em cima, criando imediatamente uma piada sobre o assunto. Não apenas fazer graça com as coisas, mas desconstruí-las, rir da própria desgraça, usar o humor para tratar de temas importantes e criticar Deus e o mundo.


Quando um jornal dinamarquês criou polêmica ao publicar uma charge de Maomé, o Hebdo logo se pôs a republicá-la, em apoio. Começou aí a querela com os radicais islâmicos. Em 2011, publicaram uma charge do Maomé dizendo: “cem chibatadas se você não morrer de rir”. Pronto! Foi o suficiente para alguém jogar um “Molotov” na redação. Além disso, um monte de gente que se leva a sério demais veio condenar a publicação e choveram ameaças. Ninguém arredou pé e o Charlie se defendeu pelo direito de rir das coisas sérias, de zombar, de livremente expressar suas ideias com humor.


Deu no que doeu. Inacreditável o que a ignorância religiosa pode fazer. Religião não une, não agrega, divide. Como diria o prêmio Nobel de Física, de 1979, Steven Weinberg: “Pessoas boas fazem o bem, pessoas ruins fazem o mal, mas para que pessoas boas façam o mal, é preciso religião”. Acrescentaria que é preciso se levar a sério demais.

Apegados em interpretações e ideologias, muitos se colocam como paladinos de sua religião, ora para converter fiéis, ora para condenar os impuros. Tudo é visto, lido, analisado com base no arcabouço de ideias que seguem à risca. Ainda mais se seus líderes carismáticos assim decretarem. Gente que se sente na missão de recriar o mundo segundo suas crenças, em detrimento de todas as outras.

Radicais e fundamentalistas se multiplicam até mesmo entre os jovens ocidentais premiados com a liberdade extrema. Tanta liberdade que abrem mão dela para se meterem no Estado Islâmico ou coisa pior. Contudo, para além da ignorância e da intolerância que dá tiros em jornalistas, o comportamento de juiz se alastra por aí mesmo esvaziado da religião, evaporada nas relações cotidianas.


O ocorrido na redação do Charlie Hebdo em Paris é exemplo extremo do que no mundo hoje se propaga como comportamento de patrulha. Não se aceita a diferença, não se discute com quem pensa diferente. Vigilância. O ataque é a melhor defesa para quem não tem argumentos ou se recusa a usar a inteligência para mudar de opinião. O negócio é desqualificar o outro como infiel ou moralista, coxinha ou reaça, seja qual extremo for.

Quando se fala de um extremista islâmico com um Kalashnikov nas mãos, todos parecem se entristecer com o resultado (e põe triste nisso), mas muitos destes costumam apontar seus juízos contra quaisquer ideias diferentes das suas. O comportamento de juiz, que julga a liberdade expressão do outro, condenando-o sem argumentos, apontando-lhe o dedo para desqualifica-lo, é ainda usado por quem se diz defensor das liberdades, das diferenças.


Não só os fundamentalistas religiosos ou idealistas partidários, mas também os paladinos da liberdade e defensores dos fracos e oprimidos vivem a caçar quaisquer opiniões diferentes pelo processo da desqualificação do oponente. Aqui mesmo na web a “patrulha do politicamente correto” costuma fazer das suas. Condenando sumariamente qualquer um que pense ou se expresse diferente, em nome de suas nobres e sagradas crenças e visões de mundo, escusam-se do argumento, fogem do debate, não se dão ao trabalho de colocar o pensamento para funcionar. Atacam, ofendem.

Não há comparação entre essas picuinhas da internet com o massacre em Paris. Longe disso. O que aconteceu lá foi a barbárie. Mas o que o exemplo do ataque ao Charlie Hebdo pode levar a refletir é sobre a intolerância de quem se acha do lado da verdade, ungido, capaz de definir como devem ser as coisas para todos. Um texto diferente, um desenho, uma expressão de pensamento é o suficiente para que alguém caia matando. Literalmente.


Finalmente, como resumo de tudo que foi dito acima, em profunda tristeza pelos cartunistas do Charlie Hebdo, em repúdio aos ataques covardes de quem se leva a sério demais, uma frase de um mestre cartunista do Brasil, Millôr Fernandes:

“Eu não quero viver num mundo em que não possa fazer uma piada de mau gosto.”



Deus: uma breve biografia

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Por Adrilles Jorge

Deus dispensa apresentações, mas não custa nada sintetizá-lo historicamente, ainda que pressuponha-se que o dito divino seja criador do tempo: mais célebre personagem criado não à imagem e semelhança do homem, mas à imagem e aperfeiçoamento absoluto dos que o criaram, a tal humanidade, como tapa-buraco de tudo que não entendemos sobre a existência e que se revela pela nossa imaginação, talvez (sim, Deus é a dúvida concreta dos que o embalam, ainda que seus devotos o neguem, alimentando ainda mais sua presença). Criação ilusória segundo muitos, realidade absoluta, segundo outros tantos, Deus não passa indiferente pelos que o adoram e muito menos pelos que o renegam, criando igrejas atemporais de louvação e contestação, se estabelecendo como o principal personagem da história da literatura e da filosofia, da arte e da história humana.

Começou multifacetado, nos politeísmos como resposta mitológica às tais perguntas metafísicas que não se respondem (de onde vim, que faço aqui, pra onde vou, patati patatá). Depois, com a organização da bíblia judaico-cristã, tornou-se um só, espalhando suas tangentes nos santos católicos que remetem às múltiplas personas dos deuses da mitologia grega. Mais severo e azedo no antigo testamento, com o advento do Cristo, o Deus feito homem, Deus tornou-se mais adocicado e complacente com as falhas humanas, ainda que um tantinho sádico em sua misericórdia divina, deixando seu filho ser crucificado em seu nome, por bem da humanidade. Os tais desígnios insondáveis de Deus que se entendem pela aceitação tácita da fé, né?


Sua existência é validada pelo pressuposto da ordenação moral e física do universo, como lá disse São Tomás de Aquino. “Mas que ordenação moral é esta, uma vez que o mal existe?” perguntou Hume. Elementar, meu caro David, respondia séculos antes Santo Agostinho: Deus teria feito o bem a partir do mal, como a luz que brota da treva. Fosse só sol a vida inteira, morreríamos de insolação, fosse só felicidade e virtude, nos suicidaríamos todos de tédio, como alguns suecos. Deus, o criador e seus criadores, sabiam das coisas, embora as coisas ficassem meio feias para os que contestassem o valor do Criador-criatura, acabando na fogueira na Idade Média por desdizerem os ditos do divino, representado pela Igreja, que detinha o monopólio de sua palavra revelada. Sim, Deus também foi devidamente manipulado para fins que não exatamente a defesa do criacionismo e já que Deus é ordenamento moral e não falando pessoalmente por esta ordem, a ordem foi passada a alguns eleitos que se elegeram porta-vozes de Deus (ainda é um pouquinho assim até hoje).

Alguns bateram o pé e se desgarraram do rebanho mas não exatamente de Deus, como Lutero, que protestou dizendo que a bíblia tinha livre interpretação, interpretando-a ele mesmo a seu modo e fundando outra escola de interpretação fechada de Deus: o protestantismo. Outros, como o filósofo Espinoza, destrinchou Deus desta imagem humana, antropomorfizada, dizendo que “Deus é natureza”, revelando-se na harmonia cósmica e que Deus não representava regra alguma. “Parem de rezar e vão rosetar e desfrutar a existência”, disse Baruch pela voz divina, sendo excomungado pela Igreja. Outro filósofo, Nietzsche, enterrou o Deus como ordenador moral e quis criar uma moral além do bem e do mal. “Deus está morto”, disse Nietzsche, que morreu endoidecido agarrado num jumento pouco depois.


Recusando-se, enfim (e ad aeternum, pelo visto) a morrer no imaginário, na fé e na cultura humana, Deus, grosso modo, permanece vivo nos que nele creem como um manual de regras, os teístas, nos deístas que nele enxergam a tal consciência cósmica e moral sem nenhum postulado ou dogma,  nos que a ele negam – os ateus, e nos que nele embatucam na dúvida, os agnósticos.

Negando, duvidando ou afirmando, todos celebram Deus à sua maneira. Cada uma destas vertentes fez sua literatura divina, por assim dizer. Enquanto a filosofia repousa no vai-e-vém da afirmação e negação e dúvida, mais recentemente a ciência tem torcido o nariz para as questões divinas. Um ou outro, como Einstein, diz ter uma consciência religiosa, afirmando crer no Deus de Espizona, um Deus desantropomorfizado, que dá de ombros para o destino humano. Mas é preciso lembrar que curiosamente foi a Igreja que promoveu algumas das mais valiosas descobertas científicas. Foi um padre – George Lemaitre – por exemplo, que criou a teoria do “Big Bang”, a da explosão em contínua expansão que teria criado o universo. Espertamente, o papa Pio XII arrematou: “se no princípio era o caos, a teoria confirma a fé católica na existência de Deus como criador”.


Mas de fato, depois que a Igreja mandou Galileu calar a boca por ter avisado que a terra não era o centro do universo e que moramos numa distante periferia de Deus ou do que lá seja o centro das coisas, a ciência tem se desgarrado de deidades feéricas e afins. Outro cientista mais contemporâneo, Richard Dawkins, dá voz à Igreja da negação divina, reiterando que Adão e Eva, meu filho, só se fossem macacos darwinianos e que Deus é um delírio que só provocou desgraça nas relações humanas.

Nem tanto, Ricky. A graça divina está justamente neste paradoxo mitológico de sua revelação enviesada no inconsciente coletivo. Sem Deus (ou sua Criação), oitenta por cento da filosofia e da literatura, da arte e da cultura não teria sido produzida e desenvolvida como foi. E, creio eu, os piores e melhores matizes da natureza humana seriam revelados da mesma forma, sem a necessidade de nenhuma revelação maior. Com ou sem Deus, ainda somos humanos, demasiadamente humanos, para nossa graça e desgraça. Deus é mais um reflexo de nossa criação imperfeita.


Texto: Adrilles Jorge

Imagens:
Michelangelo, Capela Sistina, 1505-1514

1) A Criação de Adão
2) A Criação dos Astros
3) A Separação das Águas
4) A Separação da Luz e das Trevas
5) Detalhe do Juízo Final, Cristo Pantocrator

Referências:
Suma Teológica – São Tomás de Aquino

Confissões – Santo Agostinho

Ética Demonstrada à Maneira dos Geômatras - Espinoza

Além do Bem e do Mal – Nietzsche

Deus: um delírio – Richard Dawkins

A Bíblia – vários

Compensa:

Suicidado Vincent: a tragédia de Van Gogh e a orelha

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por Homero Nunes

Van Gogh, Autorretrato com orelha cortada e cachimbo, 1889

Vincent Van Gogh foi o gênio mais fracassado da história da arte. Sua vida foi cheia de frustrações e dificuldades e só foi reconhecido após a morte. Muito da sua atual fama, aliás, vem da sua tragédia: suicídio e orelha. Apesar de todo o talento, ainda que seja um dos mais importantes pintores de todos os tempos, Van Gogh viveu na miséria, desprezado, angustiado, fracassado, desesperado. Após brigar com Paul Gaugin, também pintor, e ser rejeitado por uma prostituta pela qual se apaixonou, cortou parte da orelha e a enviou com grande dose de amargura. Bebia muito, sobretudo absinto. Fumava. Terminou tudo com um tiro no peito, ferimento que o deixou agonizante por dias antes de falecer. Suicídio e orelha foram os requintes de sua tragédia.

Van Gogh, Autorretrato com orelha enfaixada, 1889
Contraditoriamente, uma biografia recente de Van Gogh sugeriu que ele teria sido na verdade assassinado, refutando a história oficial do suicídio. Com uma pesquisa histórica profunda, estudando várias fontes, os autores, Steven Naifeh e Gregory White Smith, escreveram “Van Gogh, a vida”, em busca de desmitificar a tragédia do artista. Segundo eles, Vincent teria se envolvido em uma confusão com um jovem maldoso que costumava azucrinar pintores deprimidos e fracassados. Após bebedeira e discussão, o tal atirou. Van Gogh ferido preferiu inventar o suicídio para livrar o rapaz. Será?

Van Gogh, Autorretrato com chapéu cinza, 1887
Segundo o museu Van Gogh de Amsterdam, esta é uma biografia importante, de grande credibilidade, baseada em pesquisas sérias e profundas, contudo, a grande ressalva é justamente em relação à morte do pintor. Segundo os especialistas do museu, não dá para afirmar que não houve o suicídio, devido à falta de testemunhas ou relatos concretos. Além disso, o próprio Van Gogh, agonizando, disse a todos que atirou em si mesmo. Juras de leito de morte, nos braços do irmão, único amigo.

Van Gogh, Autorretrato, 1887
As questões levantadas pela nova biografia são relevantes, mas enviesadas. A polêmica vende. Não faltam ideias do tipo para afirmar o contrário. Não houve testemunha, segundo a história oficial. Foi ele que sobreviveu para contar a história da própria morte. Algum mistério sempre vai existir sobre a morte de uma figura tão marcante na história da arte. Não houve autópsia. A história da trajetória da bala não foi descrita pelo Dexter. Muita gente se suicida com tiros no peito (até Getúlio Vargas). Ele tinha motivos de sobra.

Vincent Van Gogh, Retrato de Theo, 1887
A biografia se aproveita ainda de um sentimento moral que tenta absolver Van Gogh da prática do suicídio, como se ele fosse melhor por ter sido assassinado. Não foi melhor, nem pior. Matou-se talvez por não suportar o fracasso, por não suportar ser tão artista e não ser aceito, em todos os sentidos. Nas cartas que escreveu para o irmão, as famosas "Cartas a Theo", era também pura angústia. Nos relatos do Dr. Gachet era loucura. Para si mesmo era fracasso. Emocional, social, econômico, familiar. Um fracasso. Um artista extraordinário, gênio, único, mas também o mais fracassado. Vendeu um único quadro na vida, para o irmão, marchand. Dependia dele -- que tinha mulher e filho para sustentar -- e lhe doía ser um fardo. Apaixonou-se pela mulher errada, aquela da orelha. Tentou a amizade de Gauguin, mas não rolou clima, faltou empatia. Cada vez mais solitário, esquisito. Cortou parte da orelha e foi fumar cachimbo. 

Van Gogh, Natureza morta com Absinto, 1887
Enxaquecas, a toxina das tintas, o absinto. Altos teores alcoólicos. Comia mal, vivia num quarto minúsculo, em Auvers-sur-Oise, sem janelas, apenas uma claraboia. Sem vista. Um sujeito que vivia de paisagens, mas que passava muitas horas dentro de um quarto sem janelas, triste. Sem perspectiva de algo melhorar, mas com uma verdadeira obsessão por pintar, grossas camadas de tinta cara, para estourar o orçamento. Algo maior que ele, possessão da arte.

Quarto de Van Gogh em Auvers-sur-Oise
Não tinha nada, mas tinha tudo, tudo mesmo, para desistir, para se desesperar, para o suicídio. Como bibliografia contrária, Antonin Artaud -- o escritor, poeta e dramaturgo francês -- escreveu em 1947, o clássico "Van Gogh: o suicidado da sociedade". Nele, o autor também se aproveitou da polêmica ao sustentar que Van Gogh foi vitimado pelo fracasso. Argumentos mil. Possíveis. Enfim, acreditar que Van Gogh não se matou talvez o absolva em nossos juízos, entretanto, muito mais mistério o envolve na dúvida. Pelas cartas que escreveu a Theo, pelo texto de Antonin Artaud, pelas páginas da história oficial, prefiro a versão do suicídio. Também pelo mistério. Vincent é mais Van Gogh pela tragédia de sua história.

Van Gogh, Campo de trigo com corvos, 1890
Compensa:


VAN GOGH, Vincent. Cartas a Theo.
Vincent por ele mesmo, nas cartas que escreveu para o irmão.












ARTAUD, Antonin. Van Gogh: o suicidado da sociedade. 1947.












NAIFEH, S. e SMITH, G. W.. Van Gogh: a vida. 2011.







Colunas: Arte eLiteratura




Katsushika Hokusai e o visual do monte Fuji

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Viajantes surpreendidos por um vento súbito em Ejiri
Katsushika Hokusai, 1832


O monte Fuji foi desenhado em uma linha simples, única, fazendo a silhueta que compõe a cena de folhas e papéis voadores e pessoas desconcertadas pela rajada de vento. O chapéu de um viajante voa com as cartas, embalado pelo movimento que sopra a paisagem. Ele gesticula surpreso, como se desse adeus ao cone de palha. Os chapéus dos outros estão seguros pelas mãos e pela posição contrária ao vento, curvados pela natureza que dobra as árvores e as pessoas. Perdida está a mulher em papéis que escapam, que se espalham no sentido da cena, poeticamente levados pelo acaso, entre as coisas precárias da vida e a inexorabilidade da natureza, do tempo.

A xilogravura pertence à série “36 vistas do monte Fuji”, criada por Katsushika Hokusai na década de 1830. O artista focou o monte por diversos ângulos, alterando composições, cores, traços, estilos. No caso, Ejiri era um posto dos correios, próximo à baía de Suruga, às margens da pequena estrada que serpenteava em direção ao monte Fuji. Fugaku sanjū-rokkei.

A grande onda de Kanagawa
Katsushika Hokusai, 1829-1833

Talvez a mais reproduzida das obras de arte japonesas no ocidente, também parte das 36 vistas do monte Fuji, mostra o nevado ao fundo, quase engolido pela grande onda em um mar revolto. Engolidos mesmo serão os barcos e os homens, pequenos e frágeis diante de uma onda no formato de uma boca aberta com dentes e presas. Bela e implacável natureza.


Mais na coluna Isso Compensa - Arte

Os 100 anos de Billie Holiday e a tragédia de uma diva

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por Homero Nunes

Espancada desde a pequena infância, filha de um casal de adolescentes e da miséria, violentada e quase estuprada aos 10, reformatório católico por causa disto, estuprada aos 12, prostituída, presa por prostituição, presa por drogas, marcada à pele pelo racismo, sofrida, mal amada, incompreendida e, apesar de tudo ou por causa de tudo, Billie Holiday se tornou a maior diva da história do Jazz.


Billie Holiday
*07 de abril de 1915
+17 de julho de 1959

Pela década mais genial da carreira, 1933 – 1944, Billie Holiday nunca recebeu nada em direitos autorais. Nos anos seguintes, também geniais, quase nada, uma mixaria. Era contratada como cantora esporádica das gravadoras e recebia 15, 20 ou 30 dólares por sessão, 75 no auge. Era só. Vendia sua voz por míseros dólares para quem ganhava milhares e milhares com ela. No longo prazo, milhões. Mais de 50 discos lançados, centenas de músicas. Nem mesmo como compositora recebeu tostões. Recebia quando cantava e – fosse no rádio, no estúdio, no bar ou no teatro – era só o que recebia. Por isso, cantava sem parar, em vários lugares, com todo mundo, por todo lado.


Vivia na estrada, na noite, no jazz. A vida já tinha sido dura demais quando a música virou o sentido dela. Descobriu o talento pela necessidade. Cantar era uma opção para matar a fome. Uma voz única, tipo ideal, arquétipo. Tão necessária e característica para a música americana quanto Van Gogh para a história da arte (contando que a música americana mudou o século XX e que Van Gogh foi o mais malogrado gênio da pintura). Assombrada pelo espírito da arte, brilho do jazz, Billie Holiday veio das profundezas das adversidades para provar que a humanidade ainda não fracassara por completo.


Nasceu em 07 de abril de 1915, em Filadélfia, mas foi criada em Baltimore, terra de Edgar Alan Poe e d’O Corvo. Descendente de uma escrava amasiada com um irlandês, era branca demais para a família da mãe e preta demais para o resto do mundo. A mãe tinha 13 anos no parto, o pai 15. Foi criada na casa da bisavó, a tal do irlandês, que lhe morreu nos braços junto com a infância. Apanhava diariamente da tia, depois que a mãe foi tentar a vida em Nova York. Acabou que não era moça de família.


Na adolescência, lavando degraus brancos e banheiros alheios, conheceu o blues de Bessie Smith e o sopro de Louis Armstrong no bordel da esquina. Trabalhava para escutar a vitrola e delirar no som. Ficou mal falada por entrar naquela casa, mas já era mesmo, desde o dia em que foi condenada ao reformatório por escapar do estupro. Um vizinho chegou a arrastá-la e prendê-la na cama, mas, por pouco, a polícia invadiu o quarto de onde se ouvia os gritos da garota de 10 anos. Foi culpada por se insinuar sexualmente para o homem, aquela criança. Mandaram-na às freiras. Aos 12 um homem de 40 a estuprou no chão da sala da avó e a mandou para uma temporada no inferno. Nem chegou a denunciá-lo, pois já tinha aprendido como a justiça funcionava para ela: culpada por ter nascido. Aos 14 chegou ao Harlem e sobreviveu graças à ajuda da cafetina que a oferecia por centavos aos pacatos cidadãos brancos de dignidade. Quando se recusou a atender um cliente mais violento, foi denunciada e presa por prostituição. Cadeia nela. Voltaria outras vezes por drogas, confusões, desacatos e, de novo, por ter nascido.


Do encontro com a mãe, apenas 13 anos mais velha, em Nova York, fez de tudo para sobreviver. Até roubou. Quando apertava demais, era puta, mas não levava jeito para a coisa, nem para ladra. Um dia, desesperada, tentou uma vaga de dançarina em uma boate. Não sabia mais de dois passos. Desengonçada na dança, cantarolou a letra. O pianista a mandou parar a dança e fazer aquilo de novo. “O que? Cantar?” Sim. Ela nem sabia que cantava. Foi imediatamente contratada, pelo preço das gorjetas das mesas, sem fixo. Na primeira noite chegou em casa com mais dinheiro que o do sexo. Descobriu que a noite também podia lhe dar a dignidade e os aplausos. Podia ser gente.


Abandonou Eleanora na sarjeta e assumiu a estrela de Billie Holiday. Eleanora Fagan Gough foi o seu nome de batismo, “Lady Day” o título que ganhou pelo talento, Billie Holiday o nome que escolheu para dobrar a vida e enganar o destino. Com ele subiu, virou uma lenda imortal do jazz. Música eterna. Diva. Um gênio da voz, por força da pobreza.



Na Renascença do Harlem, convivendo com os melhores músicos de jazz de sempre, cresceu na música, ocupou espaço entre metais e pianos. Levantava notas como trompetes, cantava como sopros de sax, usava a voz como instrumentos de jazz. Chorava o sofrimento em melodia, emocionada. Sem estudo além da quinta série, nunca estudou música, o feito vinha da alma. Há quem diga que vinha da dureza da vida. Tornou-se a maior diva da era do jazz, entre monstros como Ella Fitzgerald e Sarah Vaughan. Nina Simone.

Billie Holiday & Ella Fitzgerald
Lady Day ficou respeitada entre os músicos, acompanhou os seus ídolos, inclusive Louis Armstrong, o culpado do seu amor pela música. Foi acompanhada por eles. Benny Goodman, Lester Young, Teddy Wilson e mais uma infinidade medalhões gravaram com ela. Lotou shows no Carnegie Hall, no Apollo e quaisquer espeluncas nas quais desse as graças. Viajou pela américa lutando para ser artista, contra o racismo, contra o machismo, contra a maré. Depois conquistou a Europa e o mundo. Mas nem o estrelato lhe deu sossego do malho.

Louis Armstrong, Billie Holiday & Barney Bigard
Entre a genialidade de sua música e a dureza da vida, apanhava também dos homens, dos armários, das maçanetas das portas... olhos roxos por culpa da pia do banheiro. Amor sem correspondência, pior miséria depois da pobreza. Foi explorada, roubada, enganada, abusada, agredida, chantageada, traída e abandonada por eles. Mal amada de carteirinha, condenada à solidão. Ninguém era dela, ainda que fosse de todos.


Quanto mais famosa, maiores os problemas. A polícia lhe perseguia devido às drogas, o fisco por sonegação do que nem tinha, a justiça porque tinha nascido, os brancos porque era negra, os homens porque era mulher, as mulheres porque era famosa, os músicos porque tinham inveja dela. Mas nada lhe doía tanto quanto o racismo. Sentia na pele o peso da estratificação racial nos Estados Unidos. Teve que enfrentar o preconceito na raça, dar a sua parcela de luta pela humanidade. Seu maior sucesso, “Strange Fruit”, é uma canção de protesto contra a segregação e o racismo. Um Hino.

Count Basie & Billie Holiday
Heroína do jazz, heroína nas veias. Viciou-se em agulhas e fumos, nunca sem o Bourbon e o cigarro que lhe destruíram a voz antes dos 40. Não bebia champanhe. Para muitos, a decadência lhe aumentou o talento, na rouquidão da voz, na tristeza que impunha ao cantar. Olhos cheios d’água, veias estufando no pescoço, a garganta estourando, pulmões buscando fôlego como se nada fosse mais importante que aquela nota, que aquele refrão, que aquela música. Estraçalhada, dilacerada pela vida, ainda era o gênio de Billie Holiday.


Morreu aos 44, numa cama de hospital, triste e solitária. Toda desgraçada, sem fígado, sem pulmões, sem forças, infeccionada, envenenada pelas drogas. Sem voz. 750 dólares enfiados na vagina. 15 notas de 50, enroladas e amarradas. Era tudo que tinha. Seu funeral foi bancado pelos fãs, aos milhares. Ainda hoje, no seu centenário, é uma das maiores cantoras de todos os tempos, de todos os estilos, a maior da era do jazz. Eterna Lady Day.


Compensa "a autobiografia dilacerada de uma lenda do jazz":


















A biografia da música Strange Fruit:




















Coluna: Música


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